29.12.06

ficção VII

O despertador não tocou, calou-o antes da hora marcada. Não ouve chover, está acordado há mais de meia hora e ainda não ouviu a chuva. Desde que tomou a decisão de se envolver na “notícia” que pensa na melhor forma de solucionar esta ansiedade em penetrar no contexto do acidente. É o assassino que lhe interessa, deve estar enclausurado, vai ser difícil a aproximação, vai exigir que se desloque à capital regularmente e em horários pós laborais. Ontem, antes de adormecer, pensou em várias hipóteses para estabelecer uma relação com o criminoso. Qualquer uma delas exige dotes de representação: pensou em fazer-se passar por padre, por jornalista ou um académico. Move-o uma vontade renascida de expurgar um ódio há muito escondido nas profundezas da alma, guardado no mais secreto dos confins da imaginação, na mais reprimida das emoções.
É esta energia renascida que o faz sair da cama num ápice, ligar a hi-fi, abrir o leitor de cd’s e pôr a cavalgada das valquírias a tocar. Toma banho, faz a barba, veste-se e toma o pequeno-almoço enquanto traça os planos para o padre, o jornalista e o académico. A ideia é escolher a hipótese mais viável e o plano mais realista. Pensa na importância da primeira abordagem, na confiança que desde logo tem que ganhar ao criminoso, nas viagens, nas falsificações de documentos, em todo o trabalho que uma credível encarnação de um personagem envolve e em todos os riscos que isso acarreta. Quando sai de casa e olha o céu cinzento e a calçada seca, tem já decidida a personagem que vai encarnar: um académico estudante de psicologia a fazer um mestrado ou doutoramento (isto ainda não decidiu) sobre constrangimentos morais em homicidas involuntários.

14.12.06

Tindersticks » bathtime

(copiado do blog do salamandrel)

12.12.06

natureza a preto e branco


ruralidade


coimbra b

no bar do teatro académico gil vicente e sem efeitos

coimbra a

numa rua da baixa

9.12.06

arranha-céus, sangue

mais benjamin carre aqui

há quem, de facto, seja

"humildade? eu em humildade sou um campeão!"

gato fedorento
sketch: teste de bazófia

6.12.06

não queiras, lídia, edificar no spaço
que figuras futuro, ou prometer-te
amanhã. cumpre-te hoje, não sperando.
tu mesma és tua vida.
não te destines, que não és futura.
quem sabe se, entre a taça que esvazias,
e ela de novo enchida, não te a sorte
interpõe o abismo?
ricardo reis

m.


5.12.06

ficção VI

São onze da noite e ainda não jantou. A Bella sim, já teve direito a uma latinha de caça com cenoura, nem parece a mesma gata que o acompanhou até casa na noite em que ali se resolveu instalar, o preto do pêlo brilha, o branco parece algodão, já não se notam os ossos do corpo, tem as orelhas limpas e o nariz tem uma tonalidade rosada que lhe dá um aspecto de gatinha pequenina. Ele não come, não tem fome mas faz um chá e corta pão que dali a pouco está a saltar da torradeira. Senta-se em frente à televisão a comer e a beber, já está cansado de ver as notícias do acidente nos canais noticiosos, tem-na visto hora a hora nos diferentes canais, repetidas as entrevistas a familiares destroçados, a amigos e vizinhos do assassino (surpreendidos porque “ele até nem bebia muito…”), não conseguiram trazer a criança para as câmaras, não conseguiram apanhar o filho agora órfão, alguém teve o bom senso de o esconder de tudo isto, alguém achou que ter assistido a tudo deve ter sido o suficiente, alguém teve esse bom senso…. “O outro piloto continua a monte”, era sempre a última frase da reportagem.
Ele está cansado, as descrições do horror e do sofrimento ecoam-lhe sem cessar pela cabeça toda. Do ponto de vista das televisões a coisa funciona, o público gosta de ver os outros a sofrer, gosta de saber que estas coisas podem acontecer, que acontecem aos outros. Ele já desligou a televisão, faz-se silêncio ouve-se agora o ronronar da Bella no buraquinho do sofá que sobra entre o corpo dele e o braço do sofá onde ele descansa um braço. Lá fora chove a cântaros, tem sido um pára, recomeça, pára, recomeça desde que chegou a casa. Vai para o quarto, despe-se, trata da higiene pré deita, deita-se, tapa-se, ouve a chuva, a bela subiu para a cama, enroscou-se no lado de fora dos cobertores, encostada a ele. Ela adormece depois de ronronar durante cinco ou seis minutos. Ele toma uma decisão, vai envolver-se no acidente, vai querer excomungar de si próprio o pior que o habita.

ontem à tarde em alqueva


4.12.06

wim mertens » struggle for pleasure

(também ontem em portalegre... pena ter sido a solo...)

surrealismo (só pode...)

- há amizades vs prioridades.
- há dessas coisas?
- há!
- e há verdades vs intimidades.
- também?
- parece-me que sim... que há-de ser verdade...
- ok... e Hades?
- Hades? hás-de ver que Hades, na mitologia grega, é o deus do mundo inferior, soberano dos mortos.
- só isso?
- só.
- e ás de... ás d'espadas? tem a ver com o uso da espada? um(a) ás? então porquê? porquê um(a) ás?
- tem a ver com as idades...
- ah sim?...
- sim, mas não falo das biológicas, falo das de dentro, das que se sentem.
- mmm... entendo...
- entendes?

28.11.06

ficção V

Já roeu três unhas, não roeu mais porque entretanto apareceu um colega com documentação para ele analisar, ele disse que sim, que tratava já disso. Mas não, não está nem aí para a papelada, tem passado o tempo de site em site à procura de pormenores sobre o acidente da noite anterior. Ficou a saber o nome, a idade, a proveniência e outros demais pormenores de todos os intervenientes no acidente. Ficou a saber também que o outro condutor embriagado que fazia a corrida com o assassino, andava a monte, a fugir da sua quota-parte de responsabilidade no acidente.
Regressava-lhe à mente a imagem da criança de cinco anos, o horror, o sofrimento, o sangue, a crueldade, a impotência perante o inevitável, a morte dos pais nos olhares de despedida. Está pálido, tem vontade de sair do banco e correr sem destino até à fadiga, até ao fim do mundo e, aí, no fim do mundo, atirar-se de um precipício sem fim para nunca mais ter consciência de si. Mas não, não vai fazer nada disso, vai acalmar, está quase na hora do almoço, vai sair, almoçar e regressar para, desta vez, fazer algo de produtivo e deixar de pensar no acidente.
A tarde passa a correr, ele continua a fingir que trabalha, anseia por chegar a casa e trancar-se a ouvir música, a ler e a fazer festas à gata, a Bella. É isso que faz quando sai apressado da agência quase sem se despedir dos colegas. Está agora na segurança do seu sofá a ouvir os nocturnos de Chopin enquanto afaga a Bella ronronante no seu colo. A gata está lá em casa há dois anos porque o seguiu até lá numa noite de chuva em que ele regressava a casa já de madrugada, depois de uma noite de copos. Não conseguiu afastá-la, não teve coragem, além disso, estava demasiado inebriado para a afastar, não precisou de a agarrar, ela seguiu-o na rua, entrou no prédio e continuou a segui-lo durante as escadas que o levaram até ao segundo andar, depois da porta aberta, a gata, a Bella, ainda jovem, branca, preta, escanzelada e encharcada, entrou primeiro do que ele como se aquele apartamento fosse a sua casa, passou desde então, a ser mesmo.

23.11.06

ficção IV

Trabalha na agência deste banco há mais de cinco anos. Foi o último estagiário finalista de uma licenciatura em economia a assinar um contrato de trabalho. Havia sido o aluno com a melhor média do curso, facto que, mesmo assim, não o impediu de viver intensamente todo o mundo exterior ao mundo académico, aliás, todo o mundo académico com as suas praxes e todos os rituais institucionalizados, quase sempre o deixavam pouco orgulhoso por fazer parte de uma classe onde em certos momentos (especialmente durante as celebrações das semanas académicas), os níveis de ignorância por metro quadrado atingiam quase sempre proporções desmesuradamente baixas. Nunca foi um “marrão” e sempre teve alguma facilidade em aprender e saber o que de importante se lhe pedia quando chegava a altura de ser avaliado. Sempre cumpriu os prazos que lhe eram pedidos e raramente faltava a uma aula (algumas excepções em aulas que começavam às oito da manhã).
O gerente do banco, homem atento e muito experiente nestas coisas do negócio, adivinhou-o desde muito cedo como um excelente bancário em potência. Com efeito, desde o ano passado que o convidou a ter um pequeno “gabinete” só para si, o pequeno gabinete onde se senta agora, de frente para o computador e em busca de mais pormenores sobre a notícia que o atormenta desde manhã. Deixou de fazer atendimento ao público para se sentar no seu próprio espaço onde só atende os maiores contribuidores para a causa da empresa. O trabalho dele consiste em avaliar solicitações de empréstimo, entrevistar os solicitadores, examinar os documentos descritivos das suas situações financeiras e, eventualmente, contactar outras instituições públicas ou privadas para, entre outras coisas, obter a confirmação da veracidade de toda a documentação que estas coisas envolve. É no fundo um gestor com parte activa na avaliação das condições que um cliente tem (ou não) para contrair um empréstimo.
Esta subida de posto que o mantém afastado das filas de gente que se acumulam ao balcão, foi o fruto de anos de trabalho dedicado e sem máculas. Foi sempre um profissional exemplar, os clientes procuravam sempre que fosse ele a atendê-los, era, salvo raras excepções, simpático, sorridente, descontraído e sempre muito atencioso. Tinha uma capacidade comunicativa tão subtilmente manipuladora que apressava o cliente mais demorado, insistente e falador, lançando apenas um rápido olhar ao cliente que se encontrava atrás na fila. Se, por outro lado, um cliente se mostrasse ansioso, nervoso ou apressado, agravava um pouco o tom de voz e conversava com ele olhando-o nos olhos enquanto que as mãos, os braços e os dedos se movimentavam quase como que numa dança onde a papelada e o dinheiro faziam de seu par. Este cliente, o ansioso, acabava muitas vezes por encontrar neste momento em que se dirigia ao banco, uma espécie de intervalo de toda a ansiedade que o assaltava antes e depois de sair da agência.

21.11.06

quote

i will be your accident if you will be my ambulance
tv on the radio
"ambulance"

20.11.06

o tempo...

Dali, The Persistence of Memory, 1931 (mais dali aqui)


como se o tempo não fosse o que fazemos dele
como se fosse ele mais dono das nossas vidas
como se não nos encontrássemos sem ser nele
como se fosse ele eterno no tempo que nos tem
como se houvesse quem, por medo, fuga ou cegueira
o evitasse e o olhasse com o desdém de quem acha
que o tempo não é mais do que isso, um cruel ditador
que caprichosamente traça linhas de dor ou amor
que nos joga à sorte (ou azar) na mesa do mundo
que nos faz por aqui andar muito sem parar nem pensar
e nos faz acreditar que, no fundo, é ele e só ele
o tempo,
que nos faz e nos dá o que fomos, o que somos e seremos
e como se isso fosse verdade… como se fosse só isso,
cá andamos nós à procura de cairmos nas graças do tempo.

19.11.06

ficção III

Sai do café e olha para o céu que lhe parece agora mais cinzento, mais carregado. Sente um arrepio na espinha e um leve vento que lhe gela a cara. Caminha um pouco no passeio até que atravessa a estrada mesmo em frente ao banco. São oito e vinte sete. Toca à campainha enquanto encosta a cabeça ao vidro da porta para perceber se alguém o ouviu, um dos seus colegas que já se encontra atrás do balcão a arrumar gavetas, dinheiros, papeis e canetas, agacha-se e faz esconder o braço esquerdo no balcão, do lado de fora ouve-se o som abafado de uma campainha metálica, um segundo depois, empurra a porta com a mão que não segura a pasta e surge no clima ameno do interior da agência bancária, um cheiro a lavado levemente perfumado com um aroma marinho quase imperceptível mas que a ele, que não fuma e não tem o olfacto estragado pela constante inalação das toxinas do tabaco, não escapa.
Agradece ao colega que lhe abriu a porta e cumprimenta os outros dois que se movimentam apressadamente de um lado para o outro com caixas e pastas de papéis nas mãos. Dirige-se para um pequeno corredor ladeado por biombos de vidro que formam pequenos compartimentos de ambos os lados e sente um perfume familiarmente agradável, nesse instante, sai de um desses cubículos de vidro uma mulher de estatura média e porte soberbo, a caminhar como sempre, calmamente, de cabeça erguida e corpo em linha recta perpendicular ao chão que pisa. Tem cabelo castanho claro com um brilho demasiado exposto para não ser pintado, é levemente ondulado e cai-lhe um pouco até depois dos ombros. Tem pele pouco morena, olhos de um verde escurecido pelos rebordos castanhos da íris, um nariz relativamente pontiagudo e uns lábios rasgados que deixam revelar uma certa carnosidade quando os deixa relaxar. As linhas do rosto são levemente rígidas e subtilmente rectilíneas. Usa pouca maquilhagem e tem orgulho nisso, hoje, usa também umas calças pretas vincadas, a acompanhar as calças, um casaco preto de linhas simples e golas desproporcionadamente grandes para o seu tamanho. Traz ainda uma camisola canelada de algodão grosso e branco, gola redonda e suficientemente larga para deixar revelar um pouco das suas clavículas pronunciadas que usa como de uma coroa se tratasse. O perfume que surgiu antes dela, é discreto, pouco doce mas quente e levemente primaveril apesar de ser Outono. Foi assim que ele lhe descreveu o cheiro no dia em que ela o trouxe pela primeira vez para o trabalho e lhe pediu para o descrever sem parar mais do que cinco segundos para pensar nisso, foi exactamente assim que ele o descreveu sem ter deixado passar mais de dois segundos. Chama-se Ângela, está há quatro meses e meio na agência, é nova, está a estagiar e, se tudo correr bem, corre sérios riscos de assinar um contrato relativamente seguro e ficar por ali. A julgar pelo profissionalismo até aqui demonstrado, a simpatia, a inteligência e a aparência, está garantida sem ter que dormir com nenhum dos superiores, já está habituada aos seus galanteios mas desmarca-se sempre com a maior das simpatias e com o ar de quem apreciou o piropo, ele, muitas vezes discretamente atento à sua presença, já a apanhou a suspirar fundo e com ar de desprezo depois de ter voltado as costas a um desses galanteios vindos de um dos tais superiores que só se atreve a usar do (suposto) charme por causa da posição hierárquica que ocupa em relação a ela, lá fora e sem o estatuto, pensa ele, aquele homem deve levar das vidas mais tristes à face da terra. Mas pronto, cá dentro é o sub-gerente que adora motos, o Benfica e, nas suas palavras sempre pronunciadas com um ar baboso, “gajas boas”. Ela, a Ângela, que é simpática e não é parva nenhuma, atura-lhe as insistências pacientemente e com sorriso de donzela lisonjeada até ter o contrato assinado, depois disso, a paciência e os sorrisos serão exibidos consoante a disposição.
Já se cruzaram no corredor, já partilharam a brisa que se levanta quando dois corpos se cruzam tão próximos, ele já teve e já deu os bons dias e ela já lhe deu o sorriso de sempre, o sorriso controladamente sincero e o olhar de quem tem um prazer intrigado em sorrir ao único homem daquele banco que em quatro meses e meio ainda não tentou nada, nem sequer uma pergunta pseudo inocente sobre si própria. Ele entrou para o segundo cubículo de vidro do lado direito do corredor, ela já assumiu a sua posição no balcão de atendimento ao público, ele já se sentou, já tirou o que precisa de dentro da pasta, já ligou o computador e já deixou de pensar na Ângela para regressar ao pensamento que lhe tem ocupado a atenção, a “notícia”. Está agora imóvel a olhar o ecrã do computador, começa a roer a unha do dedo médio da mão esquerda, já não roía uma unha há mais de seis anos e neste momento fá-lo sem se aperceber disso. Aplicando uma pressão excessivamente pesada nos maxilares, rói a unha em meia dúzia de dentadas fortes e incisivas e atira os pedacinhos roídos para dentro do pequeno caixote de papéis usados que tem escondido por baixo da secretária.

18.11.06

duas bebidas no chiado

chá no benard'


café nos armazéns

herbie

coliseu, quinta à noite, duas horas e meia de música, uma daquelas experiências que por ser tão única, não precisa de mais palavras.

16.11.06

ficção II

Conduz por entre as filas de trânsito matinais, pára e anda consoante o vermelho e o verde dos semáforos, ouve as notícias, ouve uma que o deixa com um ar amedrontado, um olhar assombroso, tremem-lhe as pernas, faz uma travagem brusca e ouve os pneus a queixarem-se, fica a escassos centímetros do carro da frente mas é a notícia que ouve a única coisa que continua a deixá-lo assustado, “jovem casal morre atropelado por condutor embriagado que disputava uma corrida com um amigo e, no descontrolo do carro, sobe o passeio e embate contra uma parede, apanhando pelo meio o casal que seguia abraçado. O filho, de 5 anos que seguia mais à frente a ver as montras, assiste a tudo e vê os pais morrer à sua frente, aconteceu ontem numa avenida da capital, por volta das nove da noite”. Muda a notícia, ele continua a tremer, conduz devagar até à rua por detrás do banco onde trabalha, arranja lugar para estacionar, demora mais tempo que o normal a fazer a manobra, avança e recua sucessivamente, parece que tirou a carta de condução ontem. Agarra a pasta e sai do carro, já a dobrar a esquina lembra-se de trancar as portas e ouve o som afirmativo que agora lhe soa a algo diabólico e incitador. Vai ao café que fica em frente ao banco, o Sr. Joaquim dá-lhe os bons dias como é normal todas as manhãs, ele não ouve e não responde, não é normal ele não responder até porque é ele muitas vezes o primeiro a dar os bons dias. Pára em frente ao balcão enquanto olha as prateleiras cheias de garrafas, ainda pensa na notícia, não vê nada, não pousa a pasta. “Café?” pergunta duas vezes o Sr. Joaquim, “duplo se faz favor”, responde. “O Dr. hoje não está bem” (só o trata por Dr. quando o sente demasiado sério ou maldisposto), “porque diz isso?” “está com cara de quem viu um fantasma, não deu os bons dias, ainda não pousou a pasta e agora pede-me um café duplo”, “ia tendo um acidente agora mesmo”, diz ele enquanto pensa o quanto as pessoas do costume acham que conhecem alguém só por assistirem durante anos a pequenos fragmentos das suas rotinas diárias. “Alguém se magoou?”, “não, felizmente não”, “então deixe lá isso e beba o café descansado homem!”. Estas palavras ditas num tom de voz paternalista acalmam-no, pousa finalmente a pasta e agarra a chávena que entretanto apareceu á sua frente, bebe o café, há anos que o bebe sem açúcar, a este bebe-o sem pousar a chávena uma única vez, são tragos sucessivos e intermináveis até que o líquido acaba por se esgotar. Pousa a chávena e procura a carteira, tira uma moeda e pousa-a no balcão enquanto faz um compasso de espera para que o homem atrás do balcão tire mais cafés, dobra-se para apanhar a pasta, as pessoas cruzam-se nas suas costas consoante abandonam ou tomam o seu lugar ao balcão, ouvem-se os bons dias de quinze em quinze segundos, ele costuma responder a alguns (ainda que baixinho), hoje não, não ouve ninguém. Vê o troco em cima da mesa, agarra-o, mete-o no bolso e abandona o café em silêncio e de olhar no chão.

ficção

O despertador toca, o som é violento e fá-lo descolar as pálpebras, sente que acabou de aterrar no planeta terra caído de uma outra galáxia. Acorda sozinho, há duas semanas que é assim, tem tido pouca vontade para conquistas de fim de semana, não lhe tem apetecido nenhuma das duas parceiras sexuais disponíveis. Tira o braço de baixo dos cobertores e procura o botão certo com a ponta dos dedos, é o maior à esquerda na face superior do despertador, encontra-o e pressiona-o. Agora sim, consegue abrir os olhos por completo, a violência deixa de ser auditiva para ser visual, pisca os olhos várias vezes e à pressa, respira fundo e olha os orifícios da persiana que deixam entrar a claridade que se vê, não há sol, não vê a luz dos orifícios reflectidos na parede do quarto à sua esquerda. Deve estar frio, pensa, que merda. Perde dois minutos a pensar no fato que vai usar, perde mais tempo a decidir que gravata há-de pôr com aquele fato. É o fato azul-escuro e a gravata bordeaux-claro, a camisa é branca e os sapatos são os do costume. Mais negro que o normal, “caga nisso” é a expressão do seu pensamento. Já tem a roupa no corpo, já tomou banho, já fez a barba e já mastigou as torradas, engoliu-as com a ajuda de um sumo de laranja natural. Está pronto para sair, está na hora certa. Recolhe as chaves, a carteira e o telefone e espalha-os pelos bolsos do casaco. Lá fora deve estar frio mas não o bastante para pensar num casaco mais quente, não chove e por isso não pensa no guarda-chuva. Agarra a pasta de pele preta e aspecto sólido e dirige-se para a porta, já do lado de fora certifica-se uma última vez que tem as chaves de casa no bolso delas, vai tirá-las já a seguir, fecha a porta e atravessa a estrada, já tem as chaves na mão e procura o botão para desbloquear as portas, acendem-se quatro luzes e ouve-se um som que parece dizer “afirmativo!”. Entra no carro, pousa a pasta no banco do acompanhante, a chave na ignição, roda-a e ouve-se o motor, logo a seguir é o rádio, na TSF até ao trabalho.

14.11.06

tá quase!!!





Miles Davis referiu na sua autobiografia,
“Herbie era o passo à frente de Bud Powell
e Thelonious Monk,
ainda não ouvi mais ninguém
que estivesse à frente dele.”

13.11.06

marca registada

toda a gente devia passar pela experiência de viver sozinha. toda a gente devia aprender a viver sem as saias dos pais ou o companheirismo de irmãos e amigos amorosos. toda a gente devia, mais tarde ou mais cedo, aprender a viver com ela própria, a lidar com as coisas práticas do dia-a-dia, a ter o seu espaço, com o seu cheiro, as suas cores, a sua marca registada.
no fundo, trata-se de um processo de auto conhecimento que ajudará o sujeito a encontrar um equilíbrio interior onde o espaço que habita assume um papel preponderante num real sentimento independência perante o mundo. este processo de auto conhecimento através da independência e a consequente criação de uma marca registada própria, faz com que, mais tarde, este sujeito tenha uma visão mais alargada de qualquer espaço que possa vir a partilhar com alguém, uma visão mais descentrada nele próprio, mais respeitadora, mais capaz de negociar a gestão de espaços e tempos comuns a outro.

beber e ser bebido

há dias em que bebo e há dias em que é a bebida quem me bebe (onde é que já ouvi isto?). quando bebo sou, como todos, mais desinibido. quando sou bebido (é raro mas acontece), corro o risco de me transformar numa besta. como todas as bestas conscienciosas, acabo mais tarde por pedir desculpa. pouco me agrada reconhecer o erro mas faço-o, quando o faço sou capaz de, envergonhado, pedir desculpa pela bestialidade.

12.11.06

7.11.06

agitação

espero pela inspiração
para que possa escrever
com emoção,
espero que ela me grite
impacientemente
e com agitação
ou então,
esperarei
pela emoção
para que escreva
ansiosamente
e na agitação
de quem escreve
enquanto a alma grita
e o faz eloquentemente
antes que o intelecto
engula a emoção
e me obrigue a escrever
sem o familiar afecto,
pai dessa agitação.

4.11.06

sem lugar nem tempo

como se o tempo parasse
e não houvesse um lugar,
como se não importasse
todo o mundo lá de fora,
a multidão, a chuva ou o sol,
como se nada disso importasse
p’ra se viver um amor assim
sem princípio, meio ou fim,
sem amarras nem esconderijos,
como se o importante e o bastante
fossem os dois que se amam assim.

2.11.06

ler e escrever, ter e ser

porque um homem não vive só de imagens, poesia, frases feitas ou canções, muito me apraz regressar à escrita como quem nela se encontra e lhe sente o aconchego aquecido por cada palavra, o aconchego da língua materna que nos espelha as interioridades.

pouco antes da deita, pouco antes de um despertar matutino como há muito se não via, pouco antes de regressar à escola, escrevo meia dúzia de frases. escrevo sobre o que por aí se escreve e se lê, escrevo sobre o prazer de quem se dá, o prazer de quem recebe e de quem usa a língua e o intelecto para espraiar as emoções. escrevo sobre o prazer de ler e ter um amigo aqui à mão, um amigo a quem nos aproximamos ansiosamente sempre que nos agarramos à setinha do computador para seguir a ligação do seu cantinho, sempre na esperança de lá encontrar algo de novo, um novo post, uma nova mensagem, uma nova partilha. é uma alegria ter amigos também aqui tão perto, nos “favoritos”.

quando leio, leio tudo. leio quem me lê e até deixo que me leiam sem que me escrevam uma palavra que seja. também sou capaz de ler sem escrever, é raro mas faço-o. quando escrevo, escrevo o que me apetece, sobre o que me apetecer. faço-o muito para mim, muito para tornar clarividentes uma ínfima parte das ideias que me passam pela cabeça. sei que sou lido, não sou indiferente a isso mas não é isso que me molda a escrita. às vezes sou parco em palavras que dizem muito, outras vezes digo mais.

aos que leio, conheço-os um bocadinho melhor, conheço-os na franqueza do que escrevem, conheço-os nas alegrias, nas tristezas, nas dúvidas e nas certezas, conheço-os no receio que não têm para esconder, conheço-os no que me dão a ler (também a mim). sou muitas vezes surpreendido com o que leio, surpreendido pelas emoções que me chegam em palavras, pelas sensações que o espírito alcança em leituras que começam vagas até que são lidas e relidas até à medula de cada texto, de cada frase, de cada palavra, vírgula ou ponto, até ao espelho de quem se me dá. há coisas difíceis de ler, há coisas simples de se entender, há desabafos, interrogações, mistérios, fascínios e exaltações, há histórias e memórias, há todo um mundo comunicativo altamente enriquecedor. por ler e escrever, sinto-me muito mais encontrado, sinto que tenho muito cá dentro e que muitos me habitam com uma grandeza inédita. é por isso que escrevo e é por isto que leio.

1.11.06

by the way,


"some girls

are bigger

than others"

(not because

of their mothers

or fathers)

30.10.06

o sol de sexta deu nisto

candeeiro balança entre o yin e o yang (qual dos dois dá luz?)
buganvilia sobre azul (porque espreita a cruz?)
percurso b (o caminho do céu?)
antenas ao sol (a transmitir para as nuvens?)

moínho despido (ou base lunar?)

28.10.06

as pessoas de quem gosto como se fosse um brainstorming

gosto das pessoas que sabem o que querem. gosto das pessoas que detestam perder tempo. gosto das pessoas que são claras. gosto das pessoas que gostam delas próprias. gosto das pessoas que dizem o que pensam. gosto das pessoas que não são cobardes. gosto das pessoas que lutam p'lo que querem. gosto das pessoas que gostam das outras pessoas. gosto das pessoas que entendem as outras. gosto das pessoas que pensam nelas antes de se preocuparem com o que o "social" pensa. gosto das pessoas que pensam. gosto das pessoas que não se assustam com o que recebem das outras. gosto das pessoas que lutam p'la sua felicidade. gosto das pessoas que se dão sem reservas. gosto das pessoas simples. gosto das pessoas. sou como são as pessoas de quem gosto? não sei, mas gosto de ser como sou.

26.10.06

meteorologia pouco científica e à espera do sol

chove uma semana sem parar e sentimos saudades do sol. parece que de repente se fechou sobre nós um pano cinzento e carregado que o esconde e nos impede de beber o calor da sua luz. temos os dias assim, um depois do outro, dias em que ele se esconde por detrás deste pano na companhia do céu (imagino as longas conversas que os dois terão na tranquilidade do mundo que os não vê)... de noite, este cinzento abriga todo um outro mundo que nos é mais uma vez invisível (imagino agora as estrelas a brincar à volta da lua, imagino-as a jogar às escondidas e à apanhada pelos confins do universo)...
p’ra nós (que não brincamos), é um cinzento que nos oferece água sem parar e nos interrompe os caminhos, nos atrasa e nos obriga a pensar em coisas como guarda-chuvas. com um bocadinho de azar ainda molhamos os tornozelos, sentimos os pés frios e ouvimos os dedos a cantar o fado queixoso da humidade relativa… com um bocadinho de sorte, estamos no calor dos lençóis e adormecemos ao ritmo da canção d’embalar que a mãe natureza nos canta enquanto nos chove nos telhados.
quando acordamos, acordamos e lembramo-nos do sol, queremo-lo, queremo-lo lá fora a iluminar o despertar e a aquecer o dia, dizemos-lhe que lhe temos saudades e chamamo-lo desesperadamente… dizem que sim, dizem que a chuva vai finalmente deixar-nos matar as saudades ao sol, assim esperamos... depois? depois que venha mais chuva e que nos traga mais um inverno que cá estaremos para o aquecer.

19.10.06

impressões

se uma imagem vale por mil palavras, será que quando traçamos a imagem de alguém que mal conhecemos, estamos em condições de dizer que temos mil palavras para esse alguém? duvido… é ponto assente que a primeira impressão tem um enorme peso nos juízos que (consciente ou inconscientemente) fazemos de alguém que acabámos de conhecer. a partir daqui e consoante a dimensão (profissional, sentimental, emocional, ocasional, …) em que passamos a enquadrar esse alguém, dedicamos mais ou menos tempo a conjecturar uma imagem, um perfil que nos garanta alguma segurança nos dados que retemos dessa pessoa. é também ponto assente que todos sabemos isto, sendo portanto perfeitamente natural que todos criemos resistências perante o contacto com um estranho. ora se assim é, se dois perfeitos estranhos se encontram exactamente no mesmo ponto de partida no conhecimento do outro, o mais certo é criarem-se imagens fictícias baseadas em suposições espontâneas que, por sua vez, se convertem em crenças infundadas ou, diria mesmo mais, em ilusões. durante este processo, há ainda o factor “sexto sentido” que, quer queiramos quer não, acaba por ter um enorme peso no interesse que o outro nos pode (ou não) despertar. este sexto sentido (de explicação difícil) é o mesmo que nos faz pensar e decidir se a primeira impressão foi boa ou foi má. no limite, acabamos sempre por fazer esta divisão estanque acreditando que raramente nos enganamos na primeira impressão que tiramos de alguém… poderemos estar certos como poderemos não estar…

17.10.06

self-portrait???

mais chuva

é o som “desorquestrado” da água que pula e corre pelos telhados, o chapinhar constante de milhares de gotas que caem no chão, o cheiro da terra molhada, a frescura das ruas, o aconchego do “ninho” quando ela está lá fora, é outra vez a chuva…

16.10.06

poema matinal

sente-se mais um inverno a aproximar,
o vento despe a última roupa às árvores
e sopra como que a avisar:
“abriguem-se que trago a chuva no ar!”

o branco acinzentado do céu confunde-se,
confunde-se com as fachadas ao léu,
é ainda uma claridade de outono
que cobre a cidade como um véu.

as pessoas caminham de sombreiro na mão,
trazem vestígios da noite no olhar
trazem o atraso de quem apressa o caminhar
e, de olhar no chão,
denunciam a pouca vontade de trabalhar.

nesta manhã de segunda-feira
(em que se sente o inverno aí à beira),
caminha assim esta humanidade
por entre os outonos da cidade.

14.10.06

ícaro

não fosse ícaro um personagem mitológico e teria pensado duas vezes antes de voar, teria usado do pensamento lógico p'ra prever que asas de cera podem derreter... ao sol

13.10.06

pequeno apontamento sobre blogs amigáveis

o gesto de comentar um qualquer post de um dos blogs que frequentamos, é sempre um gesto de aproximação ao outro. há quem o faça com mais ou menos assiduidade, com mais ou menos à vontade mas, felizmente, há sempre quem o faça. por outro lado, ver-se comentado significa ser-se encontrado e sentir-se aproximado, sentir-se entendido (ou não), mas acima de tudo, sentir-se “ouvido”. sendo o blog um novo lugar de partilha desta humanidade do século XXI, aconselha-se vivamente a criação (ou recuperação) de laços entre as almas que se expõem, entre as almas que se redescobriram no gesto de escrever e se abriram no segredo publicado.
tudo isto é ainda muito novo para todos, toda esta exposição é ainda um pouco assustadora, é verdade… mesmo assim, continuamos a dar corda aos dedos e uso às teclas, com a sinceridade particular de quem o faz sem vícios nem enganos por entre as virtualidades do interior de cada um. é como se nos atirássemos de cabeça para dentro de nós mesmos e mergulhássemos através de um mundo onde encontramos toda a gente. no fim, acabamos por reparar que não fomos os únicos a fazê-lo e sentimo-nos em casa.
um blog é um lugar, um post é uma mensagem e um comentário é essa mensagem devolvida com um bocadinho de quem a ouviu.

12.10.06

mais pessoa...

nem sempre sou igual no que digo e escrevo
mudo, mas não mudo muito.
a cor das flores não é a mesma ao sol
do que quando uma nuvem passa
ou quando entra a noite
e as flores são cor da sombra

mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
por isso quando pareço não concordar comigo,
reparem bem para mim:
se estava virado para a direita,
voltei-me agora para a esquerda,
mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés
o mesmo sempre graças ao céu e à terra
e aos meus olhos e ouvidos atentos
e à minha clara simplicidade de alma…


alberto caeiro

deixem

deixem ser quem é
deixem ver quem vê
deixem vir quem vem
deixem ter quem tem
deixem a nuvem chover
deixem o céu escurecer
deixem o sol brilhar
deixem o vento soprar
deixem o sangue lutar
deixem a pele a suar
deixem em paz o olhar
deixem-me ser assim
deixem-me ser em mim
deixem-me estar
deixem-me escrever
deixem-me ser
assim como sou
p’ra quem quiser ver

10.10.06

drago, querias poesia? pois bem, aí está!

se alguém lhe sugere um poema
não se inquiete e não trema, não
não pense na poesia e ria, sorria
ria de quem pensa que por ser poeta
despe a alma p’ra quem cego é
mas sorria com quem a vê como ela é
e na poesia pára, sem fé, a olha e a escuta
e a vê, a ela, à alma, como ela é
não se inquiete e não embarque nessa luta
não queira ver com os olhos do poeta
e tente ter como suas as palavras que lê
como quem escreve como ama e é poeta
como quem ama como escreve e é amante
e como se tudo isso não fosse o bastante
p’ra na poesia se confessar a quem a lê.

9.10.06

escolhas

que se façam escolhas quando as há a fazer. que se encarem de frente e que se tomem decisões porque é disso que a vida é feita, porque só assim sentimos nas nossas mãos o destino que nos pertence.
o problema das escolhas é o de corrermos o risco de fazermos a errada e acabarmos por cair no poço do arrependimento, contudo, será mais fundo o poço de quem (confrontado com escolhas) opta por fazer a mais passiva de todas e escolhe nada fazer, permanecendo passivo à espera que seja a vida a decidir por si... quando assim é, é a vida que vive as pessoas e não o contrário...
não é minha intenção tornar estas palavras num discurso moralista, não me sinto legitimado a fazê-lo... estas palavras tornaram-se-me necessárias após uma pequena conversa com uma amiga, uma conversa a propósito da vida, das escolhas, da coragem e da cobardia, da inércia e da iniciativa... estas são as palavras de quem, por vezes, se sente desapontado com quem se deixa levar pela vida carregando-a entre o medo de arriscar e a vontade de ser feliz.

6.10.06

interrogações entre o lusco e o fusco, entre quem as escreve e quem as lê

o que se mostra pode ser diferente do que se vê.
o que se vê nem sempre é o que se exibe.
o que se sente foge-nos aos sentidos mas vive...
no fim e afinal, resta-nos o quê?
que se viva com os enganos dos sentidos?
com os sentimentos exibidos ou contidos?
com as certezas assumidas ou escondidas?
no fim e afinal, vive-se onde?
nas grades d'almas aprisionadas?
no medo de gestos no escuro?
no receio de sorrisos iluminados?
na verdade em cada lado do muro?
no fim e afinal, vive-se de quê?
vive-se d'alegria de espíritos libertados?
da liberdade de sentidos alegrados?
da candura de olhares embasbascados?
sei o que digo mas digo mais,
sei que se vive do calor do sol,
sei que se vive da melancolia da lua,
sei que há vida na alma que é minha
e que ela vive um pouco na tua.

5.10.06

pensamento

o pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e, na proporção em que não tiver elegância, perderá a acção sobre os outros. a força sem a destreza é uma simples massa.

bernardo soares,
ajudante de guarda-livros na cidade de lisboa
e heterónimo de fernando pessoa

28.9.06

pessoas assim

são bonitas as pessoas simples
são genuínas e muitas vezes puras
são-no mais vezes do que o normal
mais felizes do que as outras que são duras

fazem-nos sentir como Humanos que somos
fazem-nos abandonar tudo o que é acessório
fazem-nos sentir tudo o que somos e já fomos

esquecemo-nos do mundo com pessoas assim
e somos completos no meio de pessoas assim

try walking in my shoes

i would tell you about the things they put me through
the pain i've been subjected to
but the lord himself would blush
the countless feasts laid at my feet
forbidden fruits for me to eat
but i think your pulse would start to rush

now i'm not looking for absolution
forgiveness for the things i do
but before you come to any conclusions
try walking in my shoes
you'll stumble in my footsteps

keep the same appointments i kept
if you try walking in my shoes

morality would frown upon
decency look down upon
the scapegoat fate's made of me
but i promise now,
my judge and jurors,
my intentions couldn't have been purer
my case is easy to see

i'm not looking for a clearer conscience
peace of mind after what i've been through
and before we talk of any repentance
try walking in my shoes

"wallking in my shoes"
depeche mode

26.9.06

moment


esta imagem, como muitas outras, interessa mais pelo momento em si do que por qualquer outra razão. se repararmos com atenção, há quatro rapazes em perigo iminente, em risco de cair e se magoarem seriamente. o quinto, o mais novo, tapa a luz com a mão para poder ver com mais clareza e menor esforço as movimentações “estranhas” que acontecem no seu recreio (é o fotógrafo a procurar o melhor enquadramento para os cinco rapazes que brincam). no fim, nenhum dos quatro se magoou e o quinto regressou à brincadeira.

cinco minutos, cinco à mesa e um encontro

o nosso personagem encontra-se sentado de frente para a porta na companhia de dois amigos, um copo de whisky e um copo fresco de água do luso em cima da mesa. ela entra acompanhada por uma amiga que caminha atrás dela. olha várias vezes em volta à procura do melhor cantinho para se sentarem as duas, mas a meio das voltas de olhares encontra um conhecido, um amigo, um colega de turma dos tempos da universidade.
o nosso personagem vê-a aproximar-se mas continua a duvidar que um dos dois amigos com quem está, lhe é comum a ela. deixa de ter dúvidas quando os vê sorrir ao mesmo tempo que se olham para se cumprimentarem e nessa altura repara que é capaz de ouvir o coração a bater caso decida escutá-lo… endireita ligeiramente a coluna e desencosta-a das costas da cadeira, põe as duas mãos em cima da mesa, olha para ela, para o whisky e para a água e fica indeciso sobre qual dos copos há-de agarrar.
ela está de pé, de lado para ele enquanto conversa com o amigo em comum no único lugar vago de uma mesa onde se sentam três. ele olha-a de frente, olha-a sem pudor e com o prazer de quem olha a beleza feminina como ela é. esquece-se do segundo amigo (que entretanto deve estar tão apreciador quanto ele) e olha-a assumidamente, obviamente e interessadamente enquanto escuta a sua voz que é calma, doce e baixa mas não demais. é uma voz que se ouve a vir desde o fundo das cordas vocais. quando a vê sorrir para o amigo e sente no sorriso a sinceridade de quem o faz naturalmente e sem artifícios, o interesse sobe na hierarquia e torna-se numa vontade.
interrompe a conversa que ela mantinha com o amigo em comum há um par de minutos, dirigindo-se ao amigo no tom brincalhão de quem acha muito pouco cavalheiresca a ausência de um convite para que a amiga se sente à mesa. é ela quem responde lá do alto de quem se encontra de pé e, apontando com olhar para a amiga que entretanto se havia sentado numa mesa nas costas do personagem, lhe diz que está com ela. ele volta o pescoço e vê a amiga sentada, sozinha à espera, volta-se novamente para ela e diz-lhe que também a amiga será bem vinda à mesa.
depois destes cinco minutos, movimentaram-se corpos, olhares, cadeiras, copos e, a mesa, que dantes tinha três, passa agora a ter cinco.

25.9.06

ue detail

solidão

não nos devemos sentir sós na solidão, não a devemos olhar como um bicho papão que nos rapta do mundo e nos encerra dentro de nós próprios. não nos devemos afastar do prazer e da utilidade que ela nos pode trazer: o encontro com tudo o que somos. sem a solidão, dificilmente nos reconheceríamos e encontraríamos o nosso lugar num mundo povoado por gente desencontrada, confusa, alienada, amedrontada, iludida, falsa, escondida, mascarada, perdida… sem o abrigo da solidão e o reencontro com tudo o que somos cá dentro, seríamos mais uns assim, desnorteados. se não a procurarmos e ela nos for imposta, procuremos um amigo, um telefone e um café.

24.9.06

a escrita serve-me

serve-me muitas vezes a escrita para exercitar isso mesmo, a escrita. aproveito e uso-a para treinar o pensamento e desenhar um sentimento (mais ou menos importante) no branco do monitor. há quem diga que é uma terapia... poderá ser... mas é acima de tudo um prazer.

a música em K

K gostava de regressar à escrita para se repetir na música. gostava de se repetir nas palavras e na grandiosidade que lhes atribui quando fala de música. como se a sentisse um tapete da alma num conto d'as mil e uma noites, vive na música os voos que sem ela seriam com certeza mais rasteiros. tem-na quase sempre por perto e trata-a como se um plano de fundo se tratasse, como se a música lhe preenchesse as manchas brancas de cada cenário ou os intervalos de cada filme. dedica-lhe mais ou menos atenção consoante esses cenários, os seus tempos, as companhias ou o estado da solidão.
às vezes é ele que escolhe o que ouve, outras vezes é a música que lhe molda o espírito. quando não a ouve, vive mais atento nas coisas terrenas, mais con(centrado) nas coisas da vida vivida. quando lhe é imposta, espera pelo menos que não lhe bata mal nos tímpanos nem lhe caia mal no âmago. ouve de quase tudo, da violência da guitarra eléctrica distorcida do rock à planura do piano numa sonata, ouve cada música como se sentisse constantemente embalado pelo vai e vem de uma cadeira de baloiço. sente o coração a acelerar ou abrandar consoante a sonoridade se vai tornando mais penetrante ou mais envolvente e deixa-se levar nos sentidos guiados pelo som.
desde que se lembra que a tem como companheira de viagem nos bons e nos maus momentos, sempre se serviu dela para projectar na curva de cada onda sonora a aproximação ou afastamento a um pensamento, a uma emoção ou a um sentimento.
muito mais se poderia escrever sobre o bem que a música lhe faz… mas K não quer mais repetições ou exageros no elogio à música... enquanto seu escrivão, nada mais me resta a não ser respeitar a sua vontade e parar por aqui a descrição de uma parte da música em K…

22.9.06

killer love

get down, get down, little henry lee
and stay all night with me
you won't find a girl in this damn world
that will compare with me

i can't get down and i won't get down
and stay all night with thee
for the girl i have in that merry green land
i love far better than thee

she leaned herself against a fence
just for a kiss or two
and with a little pen-knife held in her hand
she plugged him through and through

come take him by his lilly-white hands
come take him by his feet
and throw him in this deep deep well
which is more than one hundred feet

lie there, lie there, little henry lee
till the flesh drops from your bones
for the girl you have in that merry green land
can wait forever for you to come home

and the wind did howl and the wind did moan
a little bird lit down on henry lee

"henry lee"
nick cave & the bad seeds
(feat. p. j. harvey)

21.9.06

o elogio da chuva

foram os anjos que choraram?
ou foi o céu que se rasgou?
algum deus que se zangou?
ou as estrelas derreteram
e correram
por aí abaixo?

eu não sei mas acho
que é algo de bom
esta água que cai

agrada-me
o som
e fica-me
o cheiro
de terra molhada,
a visão
de rua lavada,
a sensação
de alma refrescada,
e o paladar
doce e quente
de quem sente
na água que cai
a boca do céu.

20.9.06

no effects


há imagens que queremos ter para nós mas não sabemos exactamente como as enquadrar, insistimos e voltamos a insistir até acharmos que já não temos outros prismas a explorar, até nos cansarmos de repetir o "clic" da máquina ou até acharmos que sim, é esta, era esta a imagem que procurava.
esta foi a tentativa número 7 ou 8, encontrei-a ali enquanto passeava por pequenas memórias visuais da vida recente. fica aqui porque lhe devo isso, fica aqui pelos "clics", pelo tempo e pelo esforço na busca do enquadramento certo.
podia chamar-se "tronco velho embalado pelo guadiana e aquecido pelo sol de um dia de verão"... mas é um nome demasiado grande...

19.9.06

intimacy cats

encontros

quando os dias nos fazem procurar os amigos e as noites se nos embrenham pelos ossos adentro, é na calma caseira que encontramos o abrigo comum. se no sítio público o barulho nos enche os tímpanos, o fumo nos entope as narinas e os estranhos são demais, é em casa que nos encontramos com a paz, é no encontro planeado ou espontâneo, no convívio caseiro, no aperitivo, no jantar, na sobremesa, no café e no digestivo, que nos vemos gratos por nos sentirmos recheados de tanta amizade.
à medida que vamos crescendo e a exigência nos torna senhores do momento, é nesta partilha caseira que nos sentimos mais próximos dos que estão connosco, que rimos e choramos como se a familiaridade do encontro nos permitisse uma entrega descomplexada e sem vícios. são momentos em que nos entregamos ao olhar do outro e nos deixamos embalar pela som da sua voz, são momentos em que aprendemos e ensinamos, somos adultos e crianças, somos mais humanos. é verdade que continuamos a apreciar a agitação do café, da esplanada ou do bar, contudo, é em casa que mais facilmente nos sentimos completos, nos entregamos e recebemos de braços abertos e sorriso largo o que de melhor nos possa chegar de quem aprecia a nossa companhia. mais do que a jantarada (que é a desculpa para coisas melhores), é no encontro, na partilha, no convívio, na tertúlia, na música a condizer e no brinde, que se encontra a alegria de momentos únicos vividos em comum.
o sérgio godinho diz que “a vida é feita de pequenos nadas”, pois bem, são pequenos nadas como estas pequenas jantaradas que nos fazem crescer ao lado daqueles de quem gostamos e nos fazem amar a vida como ela é: simples, familiar e sem merdas.

18.9.06

olhares invasivos

às vezes sentem-se olhares nas costas, olhares que nos invadem sem que o queiramos ou deixemos, olhares que nos tocam sem que os vejamos, olhares às vezes incómodos, às vezes insignificantes, às vezes ignorados mas, todos eles, invasivos.
não me chateia a invasão inerente à própria exposição, não há nada a esconder e, portanto, invadem o que o que sou ou deixo ver sem que isso me aborreça verdadeiramente. o que me aborrece, isso sim, é o abuso, a presunção de quem acha que fica a conhecer melhor por invadir e continua a fazê-lo incessantemente, sem a mínima discrição ou respeito pelo espaço vital do outro, do outro e dos que vivem perto de si. serão provavelmente casos de pura ignorância, ausência de tacto, de savoir faire ou de outras demais limitações.
há, por outro lado, quem consiga ter a habilidade de invadir sem se fazer notar, sem se mostrar na multidão que está. nestes casos, o respeito é mútuo e a liberdade existe para todos na mesma medida, coisa rara mas interessante de se notar.
há ainda os que se mostram a invadir e não têm problemas nenhuns em o assumir, aprecio mais estes do que os primeiros mas menos do que os segundos. aqui, a frontalidade poderá ser tida como uma virtude perfeitamente desnecessária para o caso.
esta percepção dos olhares invasivos pode até ser exagerada na análise, contudo, ela será com certeza uma realidade que cada um entende da sua forma particular, de tal maneira que mais tarde ou mais cedo, aqui ou ali, cada um acaba por agir e/ou reagir (ou nem uma coisa nem outra) em função dessa perspectiva, perspectiva que é ainda influenciada pelo grau de importância que o invadido atribui ao invasor.

14.9.06

vivo

vivo ao sabor da chuva que recomeçou a cair
vivo em cada gota a vida que me cai do olhar
vivo na pressa de quem vai, para voltar a ir
e na certeza de quem aqui escreve só por falar

vivo as minhas noites antes dos dias
e tenho as madrugadas como guias
acordo e vivo antes de adormecer
vivo acordado até mais não poder

assim vivo e volto a viver
até a noite eterna chegar
que um dia me há-de vir ver
e nos braços me há-de levar

12.9.06

11.9.06

no mar

já no seu seio, este nosso caminhante encontra uma paz inédita para tão estranho mar. sente-se como se, por segundos, se visse a si próprio no reflexo das águas. são sensações novas acompanhadas por gigantescas doses de familiaridade, são momentos em que abraça este mar como se do céu se tratasse. sem perder a consciência do desconhecimento, o caminhante livra-se de qualquer peso que o possa atrasar dos ventos e correntes que o conduzem e encontra no mar em si, aquilo que o velho d’o velho e o mar encontra no peixe ao qual quer ganhar uma luta titânica. nunca na vida ele havia olhado com tão grande à vontade algo de tão novo, estranho e grandioso. por momentos, isso deixa-o pensativo… mas é só por momentos, logo depois, abandona-se à alegria da entrega pura e sem medidas e recebe do mar tanto ou mais do que aquilo que se sente a dar. sente-se preenchido por isso e vive a viagem deitado de costas nas águas, olhando o céu sem reservas.

8.9.06

a caminhada

depois de mais de um ano preso nas estepes siberianas, o nosso viajante resolveu arriscar e pôr-se a caminho. receia a dureza da caminhada mas não se assusta, poucas coisas o assustam, pensa ele. veste a mochila e abastece-se de água. arranca sem qualquer mapa ou guia e espera confiar no sol. sabe que é primavera e sabe que o nascente está a este, se resolver viajar de noite, confiará nas estrelas.
segue para sudoeste e caminha com um sorriso nos lábios, deixou a frieza na sibéria e começa a sentir a frescura de ambientes mais temperados. caminha sem parar e vai descansando quando isso é o mais sensato que há a fazer. dorme de noite ou de dia consoante a força do sono. todos os dias pensa na visão do paraíso que alimenta a sua vontade de caminhar em frente, sonha com ele quando dorme e vê-o para onde quer que olhe, sabe que faz o que pode para o alcançar e isso preenche-o. caminha numa primavera povoada de flores, árvores, cheiros de primavera e imponentes árvores que lhe dão a sombra do descanso. aproxima-se cada vez mais de climas quentes até que lhe começam a causar uma espécie de caos interior os conflitos e turbilhões do médio oriente, não é nada com ele e não se mete, desvia as suas atenções para as montanhas rochosas despidas de neve, há muito que não via montanhas quentes e despidas de neve. os cheiros frescos da primavera começam a ser escassos, sente que se vai aproximando cada vez mais de uma brisa quente e constante que o ataca de frente, virá a descobrir que é o deserto. quando de repente o encontra (ao deserto), encara-o de frente e diz-lhe que não tem medo dele, que já não é a primeira vez que caminha num deserto, que não baixará os braços e que caminhará pelo meio dele mesmo que no meio não encontre o paraíso, o oásis que havia sonhado lá encontrar. agarra as alças da mochila com as duas mãos perto dos ombros, inclina levemente a cabeça para a frente e dá o primeiro de muitos passos decididos. vê-se agora a atravessar o deserto, as esperanças de encontrar o paraíso prometido são cada vez menos, a preparação (para o pior) que trazia consigo, impede-o de se vergar às circunstâncias. faz um pequeno desvio para norte e sente o deserto a afastar-se, regressa para sudoeste e tenta uma última procura, sente que será a última porque se lhe esgotaram as forças da esperança. durante toda uma semana, deixa de ver o paraíso, nem uma miragem, nem um sonho. é o ponto de viragem. muda novamente de rota mas desta vez sem se preocupar com o destino ou a orientação. alguns dias depois desta viragem, dá consigo parado em frente a um enorme mar, já só pode seguir em frente se embarcar. está calor sem ser em demasia e sente o aroma fresco da água a misturar-se-lhe com a transpiração que lhe ocupa a pele. o mar deixa-o intrigado, interessado, embarca e envolve-se de ondas que lhe deixam a alma a flutuar como há muito não acontecia. está bem agora o nosso caminhante.

7.9.06

bem

- estás bem?
- muito bem, e tu?
- também
- ainda bem!

6.9.06

pequeno apontamento sobre o jogo da sedução

o jogo e o absoluto desconhecimento das regras do outro jogador, tornam o jogo da sedução num perfeito trapézio sem rede. fala-se na primeira e na segunda pessoas, dá-se o melhor que se pode e sabe e nem mesmo assim se sonha com os trunfos do outro. fazem-se apostas, perde-se e ganha-se e mesmo assim não se adivinha quem vai à frente na pontuação. quando os dois são estranhos, o jogo é mais justo, quando, pelo contrário, (pelo menos) um dos jogadores já “conhecia” o outro, as coisas assumem desde logo proporções de injustiça. neste jogo, a surpresa, o engano, o bluff, os olhares, os sorrisos e os gestos, assumem o papel do desequilíbrio e dão vantagem a quem melhor controla o conjunto destas variáveis. no essencial e quando o prazer de jogar é assumidamente mútuo, ninguém perde e acabam os dois por ganhar. o grande problema prende-se exactamente com o desconhecimento das regras pelas quais o outro jogador se rege. há sempre um clima de insegurança que os dois vão alimentando na tentativa de guardar para si o trunfo que poderá decidir a vitória. quando os dois têm consciência disto tudo, o jogo torna-se num vício.

4.9.06

a propósito de desenvolvimento humano

“the aspects of the environment that are most powerful in shaping the course of psychological growth are overwhelmingly those that have meaning to the person in a given situation”.

urie bronfenbrenner

3.9.06

dizem os astros

"on the favorable side, there exists a vast reservoir of creativity which could be successfully applied to such pursuits as writing and poetry."

- pronto, tá explicado!

http://www.astro.com/

não admira que haja tanta gente interessada (quiçá viciada) nestas coisas, senão vejamos:

"venus was in the third house of your horoscope at the time of birth. you are keenly interested in the creative arts, and your thoughts and words are surrounded by a halo of beauty, taste, and proportion. your mind actually feels the emotions connected with nature and the higher aspects of things human."

quem é que não se sente bem depois de ler coisas destas a seu respeito? (e estas nem são das mais elogiosas!)

29.8.06

aí vem o setembro

aí vem o estimadíssimo setembro
mês de começos mais do que janeiro
fim de um ciclo desde que me lembro
início outonal como se fosse o primeiro

setembro traz com ele a exigência
de mês que não está para brincadeiras
de mês em que não se cantam janeiras
de mês em que o relógio perdeu a clemência

é mês imbuído em amarelo-torrado
e peles acastanhadas pelos braços do sol
é mês de esplanadas ainda saborosas
de dias quentes e noites ventosas

paredes de coura


o último festival havia sido há demasiado tempo, há anos... regresso sem tenda e com mais 11 numa casa e todos os confortos que ela oferece. paredes de coura é o paraíso na terra, o verde nunca acaba, o rio corre sempre e o anfiteatro é pura obra da natureza. este cenário, aliado ao cartaz, obriga-me a repetir este festival e não outros. a liberdade vive-se entre o paraíso, a amizade dos que nos acompanham e a música ao vivo 12 horas sem parar. mas não foram só coisas boas, não, houve a chuva que aparecia de vez em quando e obrigava a malta a tapar-se com as recém-adquiridas gabardines e, ainda pior do que a chuva, a cerveja heineken (de pressão!), a única coisa que se podia beber para além de água... isto até teve o seu lado positivo: não apanhei nenhuma tosga monumental e, no fim de cada noite, o caminho para casa, que era sempre a subir, estava facilitado pela ausência de álcool em exagero no sangue. para além das surpresas agradáveis dos madrugada, dos yeah yeah yeahs e dos gang of for, os block party não desiludiram e os bauhaus surpreenderam por tocarem quase trinta anos depois como se tivessem acabado de sair do estúdio.

laredo by day

28.8.06

uma aventura em laredo

cantábria, uma cidade desconhecida chamada laredo, a meio caminho entre bilbao e santander foi a baía (que ainda hei-de tentar mostrar) que nos fez descer da estrada nacional na montanha até ao meio da areia na praia.
a água do mar era das mais quentes que já provei. a praia em si estava ladeada por prédios que servem as famílias que no verão aproveitam para ali passar férias. nos meses quentes, o número de habitantes deve aumentar setecentos ou oitocentos por cento.
era domingo e fomos à praça do marquês de albaida (na zona velha da cidade) uma pequena praça rodeada por casas antigas de vários andares. no rés-do-chão dessas casas estavam os bares, muitos e muito pequenos. nessa praça e na esplanada do pior bar (que no entanto tinha mesas e cadeiras debaixo da única arcada) houve whiskey e um encanto imediato pela menina que atendia as mesas de uma outra esplanada no canto da praça. mais tarde e tarde demais, teve direito a uma carta (quase) de amor em inglês! "tu não andas, voas! não sorris, ris! não te ajustas às coisas que te envolvem, possui-las! és um quadro em movimento cuja beleza nem o guggenheim tem o orgulho de exibir". isabelle, trabalhadora, competente, simpática, bonita e de olhar sincero.
no "69", um bar ali perto da praça, ouvia-se música igual à que se tem em casa, coisa inacreditável por terras de espanha!!! domingo à noite, boa música e gente simpática no bar. atrás do balcão, talvez a mulher com melhor gosto musical (pelos meus padrões, claro) que já tive a oportunidade de conhecer. lorena no nome e morena no cabelo, bonita e de olhos tristes, só a voltei a ver na última noite. este fim de domingo fez-nos ficar por ali, santander ficou adiado.
do "blues", um outro bar da praça, fizémos a partir da segunda noite a nossa segunda casa em laredo, por culpa da nicole, uma romena linda de 21 anos que tinha a responsabilidade do bar mais bonito da cidade. havia também o richard que tratava da música e continua um rebelde quase aos cinquenta. o félix, o namorado da nicole, aparecia de vez em quando para dar uma ajuda. hei-de querer voltar ao "blues" e agradecer convenientemente toda a simpatia para com "dois portugueses raros".
no meio disto tudo, ainda tenho tempo para andar a dançar de formas pornográficas com a marie, uma bonita francesa de férias, de 19 anos, de olhos verdes e sorriso grande, corpo de manequim e quase do meu tamanho. adorava dançar colada ao meu corpo no meio da pista, eu também adorava... com shakira então, era o delírio!

26.8.06

guggenheim


o guggenheim é o museu com mais vida que já tive a oportunidade de conhecer. as pessoas flúem por ali como se de penas ao vento se tratassem.
é um lugar do futuro. desde a arquitectura, aos materiais e equipamentos, o edifício só por si é digno de contemplação. para além das exposições permanentes (de cariz moderno e visionário), as galerias nobres (chamo-lhes assim porque as acho dignas do nome) tinham em exposição uma retrospectiva de toda a pintura russa desde o século XIII ao século XXI, uma delícia!
as horas que ali passei custaram-me uma dor num tendão da perna esquerda durante os dois dias seguintes. este foi um preço bastante baixo comparado com o prazer dos passeios por entre cada galeria, cada corredor, cada lance de escadas e cada metro quadrado de espaço caminhado.

telegraficamente bilbao

bilbao é uma cidade linda, habita encaixada em várias montanhas que cercam um vale verdejante que acolhe no seu leito um rio, eles chamam-lhe ria de bilbao mas é um rio. é uma cidade grande, rica, de arquitectura romântica, avenidas largas e apinhadas de árvores.

espanhóis em poucas palavras

passei a invejar os espanhóis por encararem a vida de frente. não andam cabisbaixos como os portugueses e vivem com a atitude de quem encara a vida como ela é, com a atitude de quem acha que a vida é para ser vivida sem complexos.
desde a juventude até aos mais velhos (aqueles a quem chamamos os da “terceira idade”), todos são vistos a circular nas ruas depois da meia noite. é uma atitude cultural que só enriquece o país e as mentalidades dos seus habitantes. nós por aqui não, nós, na rua depois da meia noite, só temos a juventude e os “boémios”… é pena…
os espanhóis sabem-se divertir mas têm um péssimo gosto musical e são capazes de (num bar ou discoteca) repetir a mesma música 5 vezes seguidas em apenas duas horas… falam mal (quando conseguem falar) qualquer língua que não seja a deles e têm uma – digamos – não muito boa imagem dos portugueses. talvez alguns tivessem mudado de opinião ou, pelo menos, suavizado essa visão menos boa…
são amistosos, educados e de trato fácil.
são também um bocadinho porcos, cospem para o chão num gesto perfeitamente natural e socialmente aceitável, fiquei chocado duas vezes por ver mulheres na casa dos vinte a cuspirem para o lado… muitas das casas de banho dos bares que conheci não tinham mais nada a não ser uma solitária sanita. por outro lado, sempre que servem uma bebida numa garrafa, “colam” um guardanapo em volta do gargalo para limpar ferrugens ou extractos de cola das tampas.
enfim… são um pouco assim os nuestros hermanos.

24.8.06

20 dias e 3000 Km depois

de volta! seguir-se-ão cenas dos capítulos anteriores...

3.8.06

um estranho nesta cidade

tenho a sensação que esta cidade tem alguma dificuldade em me adoptar. sinto que por mais que lhe dê, ela não me acolhe, não me abre os braços e não me deixa repousar no seu colo. admiro-a desde sempre. desde que cá parei que não tive um único minuto em que me tivesse passado pela cabeça deixá-la. hoje, uma vez mais esquecido no seio das suas muralhas, sinto-me cansado do esquecimento, da ausência de reconhecimento e, acima de tudo, da falta de acolhimento.
tenho marcado a minha existência aqui pela luta em frente, pelo bem comum (esse conceito esquecido por entre avanços tecnológicos e outras mais revoluções). tenho trabalhado aqui e ali, já estudei e volto a fazê-lo, tenho procurado fazer bem o que faço, tenho-me mantido aberto a todas as aprendizagens que a vida, as pessoas e o trabalho me dão mas mesmo assim, esta cidade não me abre os braços.
sou mais uma vez um estranho de passagem, um estranho sem a segurança do seu poiso nem o descanso do caminho certo, um estranho sem (o seu) amor. um estranho mais uma vez entregue ao destino e aos caprichos desta cidade, um "sobrevivente", como alguém me chamou. mas a sobrevivência cansa... é talvez por isso que me sinto demasiado crescido, envelhecido até. estou cansado de (sobre)viver assim, cansado de tanto remar contra a corrente, de ser um vagabundo na cidade que desde o primeiro dia acolhi no coração como se de um amor à primeira vista se tratasse.
no outro dia, li nas palavras de uma amiga que "somos as nossas escolhas". sem dúvida que somos o fruto delas, dessas escolhas. talvez aí esteja o meu handicap, talvez não tenha sabido fazer as minhas, talvez devesse ter aprendido a não lutar contra o absentismo, o comodismo e a ignorância, talvez devesse eu próprio ter-me deixado aculturar pelas regras fáceis desta cidade, os seus costumes e a sua moral encravada entre cada pedaço de cada tijolo da muralha.
talvez seja eu, talvez seja a muralha, não sei mas hoje sinto-me angustiado por me sentir um estranho nesta cidade...

arrepios

esta noite arrepiei-me duas vezes por me sentir mais do que eu nos olhos de alguém.

2.8.06

outro sentido

um, dois

um sentido na vida
dois sentidos na estrada
um destino na ida
dois amigos, uma caminhada

vou

deixar esta cidade p’ra trás
e vê-la afundar-se nas muralhas
abandonar o sentido fugaz
de quem se enche de migalhas

embarcar na viagem p’ra norte
sempre em frente até ao mar
beber a paz que vem com o ar
e acreditar na boa fé da sorte

sentido

no calor do dia e na luz do sol,
o meu corpo alimenta a cada passo
um coração mole
e um olhar lasso

na frescura da noite e na presença da lua,
a minha alma alimenta-se de luto
entre o conforto do sofá e a calçada da rua,
entre os olhares fundos que a deixam nua

entre a noite e o dia,
vou encontrando sentido
em quem o olhar me guia,
em quem mo tem tido.

30.7.06

(a mais bela e triste canção de amor)

when routine bites hard
and ambitions are low
and resentment rides high
but emotions won’t grow
and were changing our ways, taking different roads

then love, love will tear us apart again

why is the bedroom so cold?
you’ve turned away on your side
is my timing that flawed?
our respect runs so dry
yet there’s still appeal that we’ve kept through our lives

but, love, love will tear us apart again

you cry out in your sleep
all my failings exposed
and there’s a taste in my mouth
as desperation takes hold
just that something so good just cant function no more

but love, love will tear us apart again

ian curtis
(joy division)
love will tear us apart
1980

29.7.06

existência

"a existência penetra em mim por todos os lados,
pelos olhos, pelo nariz, pela boca..."
jean-paul sartre

25.7.06

um cigarro

um cigarro, um inimigo do corpo e amigo da alma. um companheiro na hora mais difícil que acabará por adiantar a hora em que tudo fica fácil e acaba.
num cigarro deposito o peso que me atrasa o pensamento e a emoção que me acalma o sentimento. com um cigarro tudo fica facilitado no momento da passa, no preciso momento do olhar vazio sobre o cenário do nada, no paladar do tabaco e no prazer do fumo. o cigarro é a minha muleta na doença do pensamento e a fuga para a liberdade na prisão do sentimento.
talvez um dia o abandone à porta da minha felicidade e deixe de ter nele o prazer da liberdade. quando assim for, se assim for, é bom sinal, é sinal que a alma, o sentimento e o pensamento, já não precisam do fumo para irem mais longe.

curtíssima (inacabada) em palavras

- atenção. câmera. acção!

tensão… surpresa… ilusão! frieza!

- corta. repete!

sensação… fragrância! emoção… ânsia…

- não, não, nada disso, repete se faz favor…
prontos? acção!

coração… rapidez! comichão… malvadez…

- ei, ei! isso é o quê?
vamos lá parar com isso e recomeçar tudo de novo se faz favor!

...

23.7.06

lx in fresco-painting

o silêncio

o silêncio
pode ser cúmplice na igualdade do nada
pode ser tudo num momento de guerra
pode levar-nos longe na conquista do céu
ou acabar por nos fazer cair por terra

o silêncio
cai bem às vezes
cai mal também
cai como cai
dependendo de quem

o silêncio
pode trair
pode ferir
sem sair
e sem cair

mas o silêncio
fica sempre bem
com quem
no silêncio nos tem

17.7.06

domingo negro descrito na primeira pessoa com o bónus da análise da coisa na terceira pessoa

domingo negro na primeira pessoa

vê-se logo que os últimos dois posts foram escritos num domingo. num domingo infernal, quarenta graus à sombra. vê-se logo que não é um domingo qualquer, que é um domingo negro, daqueles domingos que pesam mais do que qualquer outro domingo, daqueles domingos que ficam gravados na pele como se de cicatrizes se tratassem. o dia caiu-me em cima no preciso momento em que acordei. percebi logo nos primeiros segundos que aquele não ia ser um domingo qualquer… sem razão nenhuma (objectiva e clara, pelo menos) vejo-me acordado, a fumar o primeiro cigarro e a pensar na melhor forma de se apanhar um domingo assim sem ficar com grandes mossas. tá visto que fosse qual fosse o plano, a coisa não funcionou e a prova são os dois posts impregnados de soturnidade. ainda por cima, o post anterior havia sido escrito num momento de candura, daqueles momentos que nos fazem perceber a alma e corpo a sorrirem de mãos dadas enquanto olham o céu. mas isso já não interessa e o domingo até acabou por ser pródigo em trabalho (foi aí - já tarde - que acabei por encontrar solução para um domingo assim).

análise da coisa na terceira pessoa

curiosa a brusca mudança de tom nos três referidos posts. nota-se que o autor foi inconstante, de uma rapidíssima alteração de humores, saber-se-á porquê e daí talvez não… não vamos especular, limitemo-nos a olhar os factos e a deixar as suposições, afinal de contas, conversamos num icebergue. mas também não vale a pena perdermos tempo a pensar no que estas ou aquelas palavras poderão querer dizer porque temos mais que fazer! a culpa é toda vossa, são vocês os culpados por fazerem com que o gajo escreva, mimam-no, elogiam-lhe a escrita, enaltecem-lhe o ego e depois é isto, põem-se a ler estas palavras casuais como se algo importante se tratasse. seja como for, o autor, esse gajo, pediu-me para lhes agradecer o incentivo e a partilha. até já.

ghost in grayscale

16.7.06

cry vs weep

father, why are all the children weeping?
they are merely crying son
o, are they merely crying, father?
yes, true weeping is yet to come
nick cave
the weeping song

14.7.06

peça de pedaço de vida

que encontros do acaso são estes
que no acaso me dão encontros destes
e sem que o queira nem o peça
me largam no meio de uma peça
escrita pela mão de um qualquer ente
que tanto pode ser deus como gente

que peça é esta a que é escrita
onde cada personagem é real
e em cada página descrita
não se consegue ver o mal

digam-me quem escreveu o argumento
de uma peça assim
e não me façam perder nem um momento
a pensar que tem um fim

digam-me quem compôs esta música
que faz correr a água
e põe os pássaros a cantar,
que faz o vento soprar
sem sons de dor ou mágoa

digam-me quem desenhou este cenário
onde as nuvens são transparentes,
o sol nunca se põe
e a lua nunca se cansa.

12.7.06

atrevo-me e partilho as primeiras palavras seriamente escritas (aqui vai um segredo - até agora - muito bem guardado):

antes de começar, tenho que marcar o branco imaculado com a oficialização de um momento que há muito era esperado, chamo-lhe, liricamente, um novo fruto na árvore da vida, enfim... um momento em que formalmente passo a partilhar a sombra da árvore com as palavras (e o que mais cá vier) nos filhos da sua morte prematura, os papeis.

ofício.

noite de terça-feira, no quarto de casa, à luz de duas velas porque candeeiros não há e a do tecto é demais, além disso há os mosquitos que de boa vontade se sentiriam convidados a partilhar do meu sangue. sentado na cama, com uma mesa que é a coxa e outra perna que se estica.

vejo na pintura da janela uma lua, ao fundo, montada numa antena que, por sua vez, se encavalita na chaminé sem cavalgar, é linda e está cheia.

é o dia catorze de agosto de dois mil e como é óbvio – doutra maneira não teria coragem para esta burocratização dos sentimentos – estive cacilhando, lá nos tanques, com os velhos amigos novos, com o maior, o T.

voltei ao ninho, liguei-me aos tindersticks e comecei a gastar tinta muito sem pensar, paro às vezes, segundos (que hão-de ser horas), porque me faltam centenas de páginas de um dicionário, mas é um desafio estimulante a mãe ser uma língua tão vasta... gostava de escrever um quarto de um romance...

reparo que a lua mudou de sítio, só pode ter sido isso! antenas e chaminés não têm vida.

as velas vão-se acabando esculpindo-se na suave lâmina da fina e aveludada brisa que invade o escritó rio.

“whiskey & water” penetra-me e obriga-me a mexer a mão com que fumo, dançando ao som dos violinos que se esganiçam... dança-me agora a mão da caneta ao som da bateria...

a minha mãe, “joão manuel!” – a telenovela acabou, tempo de antena para o ciclo belga na dois ou, se não valer a pena, os ficheiros secretos na quatro, logo se vê. aaaahh o ócio...

vale da sancha
14.08.2000

11.7.06

azul

azul-turquesa
laranja mecânica
azul à defesa
laranja ao ataque
azul na mesa
rosa na rua
azul é presa
da pêra nua
azul é beleza
nos olhos da lua
azul é tristeza
sozinho na rua
azul é estranheza
na cor que é tua
azul é incerteza
na laranja que amua
azul na marquesa
azul na firmeza
azul é clareza!

10.7.06

língua inglesa

gosto da língua inglesa desde que a conheço. este gosto sempre me facilitou a vida aqui e ali mas já gostava dela antes de descobrir isso. sempre gostei da ideia de termos toda a gente do planeta a ser capaz de conversar com toda a gente. todos sabermos inglês é um atalho. é o inglês e não outra língua qualquer por causa do império de nível planetário de há três séculos atrás, é verdade… felizmente a língua é fácil, tão fácil que nem sequer é comparável (ao nível da fonética, da morfologia, da sintaxe ou da ortografia) à complexidade da língua portuguesa (por exemplo).

sea-shell on a suitable sunday's sand