16.11.06

ficção II

Conduz por entre as filas de trânsito matinais, pára e anda consoante o vermelho e o verde dos semáforos, ouve as notícias, ouve uma que o deixa com um ar amedrontado, um olhar assombroso, tremem-lhe as pernas, faz uma travagem brusca e ouve os pneus a queixarem-se, fica a escassos centímetros do carro da frente mas é a notícia que ouve a única coisa que continua a deixá-lo assustado, “jovem casal morre atropelado por condutor embriagado que disputava uma corrida com um amigo e, no descontrolo do carro, sobe o passeio e embate contra uma parede, apanhando pelo meio o casal que seguia abraçado. O filho, de 5 anos que seguia mais à frente a ver as montras, assiste a tudo e vê os pais morrer à sua frente, aconteceu ontem numa avenida da capital, por volta das nove da noite”. Muda a notícia, ele continua a tremer, conduz devagar até à rua por detrás do banco onde trabalha, arranja lugar para estacionar, demora mais tempo que o normal a fazer a manobra, avança e recua sucessivamente, parece que tirou a carta de condução ontem. Agarra a pasta e sai do carro, já a dobrar a esquina lembra-se de trancar as portas e ouve o som afirmativo que agora lhe soa a algo diabólico e incitador. Vai ao café que fica em frente ao banco, o Sr. Joaquim dá-lhe os bons dias como é normal todas as manhãs, ele não ouve e não responde, não é normal ele não responder até porque é ele muitas vezes o primeiro a dar os bons dias. Pára em frente ao balcão enquanto olha as prateleiras cheias de garrafas, ainda pensa na notícia, não vê nada, não pousa a pasta. “Café?” pergunta duas vezes o Sr. Joaquim, “duplo se faz favor”, responde. “O Dr. hoje não está bem” (só o trata por Dr. quando o sente demasiado sério ou maldisposto), “porque diz isso?” “está com cara de quem viu um fantasma, não deu os bons dias, ainda não pousou a pasta e agora pede-me um café duplo”, “ia tendo um acidente agora mesmo”, diz ele enquanto pensa o quanto as pessoas do costume acham que conhecem alguém só por assistirem durante anos a pequenos fragmentos das suas rotinas diárias. “Alguém se magoou?”, “não, felizmente não”, “então deixe lá isso e beba o café descansado homem!”. Estas palavras ditas num tom de voz paternalista acalmam-no, pousa finalmente a pasta e agarra a chávena que entretanto apareceu á sua frente, bebe o café, há anos que o bebe sem açúcar, a este bebe-o sem pousar a chávena uma única vez, são tragos sucessivos e intermináveis até que o líquido acaba por se esgotar. Pousa a chávena e procura a carteira, tira uma moeda e pousa-a no balcão enquanto faz um compasso de espera para que o homem atrás do balcão tire mais cafés, dobra-se para apanhar a pasta, as pessoas cruzam-se nas suas costas consoante abandonam ou tomam o seu lugar ao balcão, ouvem-se os bons dias de quinze em quinze segundos, ele costuma responder a alguns (ainda que baixinho), hoje não, não ouve ninguém. Vê o troco em cima da mesa, agarra-o, mete-o no bolso e abandona o café em silêncio e de olhar no chão.

1 comentário:

ana disse...

Que português escorreito... que fluidez de escrita... continua. Beijo.