28.11.06

ficção V

Já roeu três unhas, não roeu mais porque entretanto apareceu um colega com documentação para ele analisar, ele disse que sim, que tratava já disso. Mas não, não está nem aí para a papelada, tem passado o tempo de site em site à procura de pormenores sobre o acidente da noite anterior. Ficou a saber o nome, a idade, a proveniência e outros demais pormenores de todos os intervenientes no acidente. Ficou a saber também que o outro condutor embriagado que fazia a corrida com o assassino, andava a monte, a fugir da sua quota-parte de responsabilidade no acidente.
Regressava-lhe à mente a imagem da criança de cinco anos, o horror, o sofrimento, o sangue, a crueldade, a impotência perante o inevitável, a morte dos pais nos olhares de despedida. Está pálido, tem vontade de sair do banco e correr sem destino até à fadiga, até ao fim do mundo e, aí, no fim do mundo, atirar-se de um precipício sem fim para nunca mais ter consciência de si. Mas não, não vai fazer nada disso, vai acalmar, está quase na hora do almoço, vai sair, almoçar e regressar para, desta vez, fazer algo de produtivo e deixar de pensar no acidente.
A tarde passa a correr, ele continua a fingir que trabalha, anseia por chegar a casa e trancar-se a ouvir música, a ler e a fazer festas à gata, a Bella. É isso que faz quando sai apressado da agência quase sem se despedir dos colegas. Está agora na segurança do seu sofá a ouvir os nocturnos de Chopin enquanto afaga a Bella ronronante no seu colo. A gata está lá em casa há dois anos porque o seguiu até lá numa noite de chuva em que ele regressava a casa já de madrugada, depois de uma noite de copos. Não conseguiu afastá-la, não teve coragem, além disso, estava demasiado inebriado para a afastar, não precisou de a agarrar, ela seguiu-o na rua, entrou no prédio e continuou a segui-lo durante as escadas que o levaram até ao segundo andar, depois da porta aberta, a gata, a Bella, ainda jovem, branca, preta, escanzelada e encharcada, entrou primeiro do que ele como se aquele apartamento fosse a sua casa, passou desde então, a ser mesmo.

23.11.06

ficção IV

Trabalha na agência deste banco há mais de cinco anos. Foi o último estagiário finalista de uma licenciatura em economia a assinar um contrato de trabalho. Havia sido o aluno com a melhor média do curso, facto que, mesmo assim, não o impediu de viver intensamente todo o mundo exterior ao mundo académico, aliás, todo o mundo académico com as suas praxes e todos os rituais institucionalizados, quase sempre o deixavam pouco orgulhoso por fazer parte de uma classe onde em certos momentos (especialmente durante as celebrações das semanas académicas), os níveis de ignorância por metro quadrado atingiam quase sempre proporções desmesuradamente baixas. Nunca foi um “marrão” e sempre teve alguma facilidade em aprender e saber o que de importante se lhe pedia quando chegava a altura de ser avaliado. Sempre cumpriu os prazos que lhe eram pedidos e raramente faltava a uma aula (algumas excepções em aulas que começavam às oito da manhã).
O gerente do banco, homem atento e muito experiente nestas coisas do negócio, adivinhou-o desde muito cedo como um excelente bancário em potência. Com efeito, desde o ano passado que o convidou a ter um pequeno “gabinete” só para si, o pequeno gabinete onde se senta agora, de frente para o computador e em busca de mais pormenores sobre a notícia que o atormenta desde manhã. Deixou de fazer atendimento ao público para se sentar no seu próprio espaço onde só atende os maiores contribuidores para a causa da empresa. O trabalho dele consiste em avaliar solicitações de empréstimo, entrevistar os solicitadores, examinar os documentos descritivos das suas situações financeiras e, eventualmente, contactar outras instituições públicas ou privadas para, entre outras coisas, obter a confirmação da veracidade de toda a documentação que estas coisas envolve. É no fundo um gestor com parte activa na avaliação das condições que um cliente tem (ou não) para contrair um empréstimo.
Esta subida de posto que o mantém afastado das filas de gente que se acumulam ao balcão, foi o fruto de anos de trabalho dedicado e sem máculas. Foi sempre um profissional exemplar, os clientes procuravam sempre que fosse ele a atendê-los, era, salvo raras excepções, simpático, sorridente, descontraído e sempre muito atencioso. Tinha uma capacidade comunicativa tão subtilmente manipuladora que apressava o cliente mais demorado, insistente e falador, lançando apenas um rápido olhar ao cliente que se encontrava atrás na fila. Se, por outro lado, um cliente se mostrasse ansioso, nervoso ou apressado, agravava um pouco o tom de voz e conversava com ele olhando-o nos olhos enquanto que as mãos, os braços e os dedos se movimentavam quase como que numa dança onde a papelada e o dinheiro faziam de seu par. Este cliente, o ansioso, acabava muitas vezes por encontrar neste momento em que se dirigia ao banco, uma espécie de intervalo de toda a ansiedade que o assaltava antes e depois de sair da agência.

21.11.06

quote

i will be your accident if you will be my ambulance
tv on the radio
"ambulance"

20.11.06

o tempo...

Dali, The Persistence of Memory, 1931 (mais dali aqui)


como se o tempo não fosse o que fazemos dele
como se fosse ele mais dono das nossas vidas
como se não nos encontrássemos sem ser nele
como se fosse ele eterno no tempo que nos tem
como se houvesse quem, por medo, fuga ou cegueira
o evitasse e o olhasse com o desdém de quem acha
que o tempo não é mais do que isso, um cruel ditador
que caprichosamente traça linhas de dor ou amor
que nos joga à sorte (ou azar) na mesa do mundo
que nos faz por aqui andar muito sem parar nem pensar
e nos faz acreditar que, no fundo, é ele e só ele
o tempo,
que nos faz e nos dá o que fomos, o que somos e seremos
e como se isso fosse verdade… como se fosse só isso,
cá andamos nós à procura de cairmos nas graças do tempo.

19.11.06

ficção III

Sai do café e olha para o céu que lhe parece agora mais cinzento, mais carregado. Sente um arrepio na espinha e um leve vento que lhe gela a cara. Caminha um pouco no passeio até que atravessa a estrada mesmo em frente ao banco. São oito e vinte sete. Toca à campainha enquanto encosta a cabeça ao vidro da porta para perceber se alguém o ouviu, um dos seus colegas que já se encontra atrás do balcão a arrumar gavetas, dinheiros, papeis e canetas, agacha-se e faz esconder o braço esquerdo no balcão, do lado de fora ouve-se o som abafado de uma campainha metálica, um segundo depois, empurra a porta com a mão que não segura a pasta e surge no clima ameno do interior da agência bancária, um cheiro a lavado levemente perfumado com um aroma marinho quase imperceptível mas que a ele, que não fuma e não tem o olfacto estragado pela constante inalação das toxinas do tabaco, não escapa.
Agradece ao colega que lhe abriu a porta e cumprimenta os outros dois que se movimentam apressadamente de um lado para o outro com caixas e pastas de papéis nas mãos. Dirige-se para um pequeno corredor ladeado por biombos de vidro que formam pequenos compartimentos de ambos os lados e sente um perfume familiarmente agradável, nesse instante, sai de um desses cubículos de vidro uma mulher de estatura média e porte soberbo, a caminhar como sempre, calmamente, de cabeça erguida e corpo em linha recta perpendicular ao chão que pisa. Tem cabelo castanho claro com um brilho demasiado exposto para não ser pintado, é levemente ondulado e cai-lhe um pouco até depois dos ombros. Tem pele pouco morena, olhos de um verde escurecido pelos rebordos castanhos da íris, um nariz relativamente pontiagudo e uns lábios rasgados que deixam revelar uma certa carnosidade quando os deixa relaxar. As linhas do rosto são levemente rígidas e subtilmente rectilíneas. Usa pouca maquilhagem e tem orgulho nisso, hoje, usa também umas calças pretas vincadas, a acompanhar as calças, um casaco preto de linhas simples e golas desproporcionadamente grandes para o seu tamanho. Traz ainda uma camisola canelada de algodão grosso e branco, gola redonda e suficientemente larga para deixar revelar um pouco das suas clavículas pronunciadas que usa como de uma coroa se tratasse. O perfume que surgiu antes dela, é discreto, pouco doce mas quente e levemente primaveril apesar de ser Outono. Foi assim que ele lhe descreveu o cheiro no dia em que ela o trouxe pela primeira vez para o trabalho e lhe pediu para o descrever sem parar mais do que cinco segundos para pensar nisso, foi exactamente assim que ele o descreveu sem ter deixado passar mais de dois segundos. Chama-se Ângela, está há quatro meses e meio na agência, é nova, está a estagiar e, se tudo correr bem, corre sérios riscos de assinar um contrato relativamente seguro e ficar por ali. A julgar pelo profissionalismo até aqui demonstrado, a simpatia, a inteligência e a aparência, está garantida sem ter que dormir com nenhum dos superiores, já está habituada aos seus galanteios mas desmarca-se sempre com a maior das simpatias e com o ar de quem apreciou o piropo, ele, muitas vezes discretamente atento à sua presença, já a apanhou a suspirar fundo e com ar de desprezo depois de ter voltado as costas a um desses galanteios vindos de um dos tais superiores que só se atreve a usar do (suposto) charme por causa da posição hierárquica que ocupa em relação a ela, lá fora e sem o estatuto, pensa ele, aquele homem deve levar das vidas mais tristes à face da terra. Mas pronto, cá dentro é o sub-gerente que adora motos, o Benfica e, nas suas palavras sempre pronunciadas com um ar baboso, “gajas boas”. Ela, a Ângela, que é simpática e não é parva nenhuma, atura-lhe as insistências pacientemente e com sorriso de donzela lisonjeada até ter o contrato assinado, depois disso, a paciência e os sorrisos serão exibidos consoante a disposição.
Já se cruzaram no corredor, já partilharam a brisa que se levanta quando dois corpos se cruzam tão próximos, ele já teve e já deu os bons dias e ela já lhe deu o sorriso de sempre, o sorriso controladamente sincero e o olhar de quem tem um prazer intrigado em sorrir ao único homem daquele banco que em quatro meses e meio ainda não tentou nada, nem sequer uma pergunta pseudo inocente sobre si própria. Ele entrou para o segundo cubículo de vidro do lado direito do corredor, ela já assumiu a sua posição no balcão de atendimento ao público, ele já se sentou, já tirou o que precisa de dentro da pasta, já ligou o computador e já deixou de pensar na Ângela para regressar ao pensamento que lhe tem ocupado a atenção, a “notícia”. Está agora imóvel a olhar o ecrã do computador, começa a roer a unha do dedo médio da mão esquerda, já não roía uma unha há mais de seis anos e neste momento fá-lo sem se aperceber disso. Aplicando uma pressão excessivamente pesada nos maxilares, rói a unha em meia dúzia de dentadas fortes e incisivas e atira os pedacinhos roídos para dentro do pequeno caixote de papéis usados que tem escondido por baixo da secretária.

18.11.06

duas bebidas no chiado

chá no benard'


café nos armazéns

herbie

coliseu, quinta à noite, duas horas e meia de música, uma daquelas experiências que por ser tão única, não precisa de mais palavras.

16.11.06

ficção II

Conduz por entre as filas de trânsito matinais, pára e anda consoante o vermelho e o verde dos semáforos, ouve as notícias, ouve uma que o deixa com um ar amedrontado, um olhar assombroso, tremem-lhe as pernas, faz uma travagem brusca e ouve os pneus a queixarem-se, fica a escassos centímetros do carro da frente mas é a notícia que ouve a única coisa que continua a deixá-lo assustado, “jovem casal morre atropelado por condutor embriagado que disputava uma corrida com um amigo e, no descontrolo do carro, sobe o passeio e embate contra uma parede, apanhando pelo meio o casal que seguia abraçado. O filho, de 5 anos que seguia mais à frente a ver as montras, assiste a tudo e vê os pais morrer à sua frente, aconteceu ontem numa avenida da capital, por volta das nove da noite”. Muda a notícia, ele continua a tremer, conduz devagar até à rua por detrás do banco onde trabalha, arranja lugar para estacionar, demora mais tempo que o normal a fazer a manobra, avança e recua sucessivamente, parece que tirou a carta de condução ontem. Agarra a pasta e sai do carro, já a dobrar a esquina lembra-se de trancar as portas e ouve o som afirmativo que agora lhe soa a algo diabólico e incitador. Vai ao café que fica em frente ao banco, o Sr. Joaquim dá-lhe os bons dias como é normal todas as manhãs, ele não ouve e não responde, não é normal ele não responder até porque é ele muitas vezes o primeiro a dar os bons dias. Pára em frente ao balcão enquanto olha as prateleiras cheias de garrafas, ainda pensa na notícia, não vê nada, não pousa a pasta. “Café?” pergunta duas vezes o Sr. Joaquim, “duplo se faz favor”, responde. “O Dr. hoje não está bem” (só o trata por Dr. quando o sente demasiado sério ou maldisposto), “porque diz isso?” “está com cara de quem viu um fantasma, não deu os bons dias, ainda não pousou a pasta e agora pede-me um café duplo”, “ia tendo um acidente agora mesmo”, diz ele enquanto pensa o quanto as pessoas do costume acham que conhecem alguém só por assistirem durante anos a pequenos fragmentos das suas rotinas diárias. “Alguém se magoou?”, “não, felizmente não”, “então deixe lá isso e beba o café descansado homem!”. Estas palavras ditas num tom de voz paternalista acalmam-no, pousa finalmente a pasta e agarra a chávena que entretanto apareceu á sua frente, bebe o café, há anos que o bebe sem açúcar, a este bebe-o sem pousar a chávena uma única vez, são tragos sucessivos e intermináveis até que o líquido acaba por se esgotar. Pousa a chávena e procura a carteira, tira uma moeda e pousa-a no balcão enquanto faz um compasso de espera para que o homem atrás do balcão tire mais cafés, dobra-se para apanhar a pasta, as pessoas cruzam-se nas suas costas consoante abandonam ou tomam o seu lugar ao balcão, ouvem-se os bons dias de quinze em quinze segundos, ele costuma responder a alguns (ainda que baixinho), hoje não, não ouve ninguém. Vê o troco em cima da mesa, agarra-o, mete-o no bolso e abandona o café em silêncio e de olhar no chão.

ficção

O despertador toca, o som é violento e fá-lo descolar as pálpebras, sente que acabou de aterrar no planeta terra caído de uma outra galáxia. Acorda sozinho, há duas semanas que é assim, tem tido pouca vontade para conquistas de fim de semana, não lhe tem apetecido nenhuma das duas parceiras sexuais disponíveis. Tira o braço de baixo dos cobertores e procura o botão certo com a ponta dos dedos, é o maior à esquerda na face superior do despertador, encontra-o e pressiona-o. Agora sim, consegue abrir os olhos por completo, a violência deixa de ser auditiva para ser visual, pisca os olhos várias vezes e à pressa, respira fundo e olha os orifícios da persiana que deixam entrar a claridade que se vê, não há sol, não vê a luz dos orifícios reflectidos na parede do quarto à sua esquerda. Deve estar frio, pensa, que merda. Perde dois minutos a pensar no fato que vai usar, perde mais tempo a decidir que gravata há-de pôr com aquele fato. É o fato azul-escuro e a gravata bordeaux-claro, a camisa é branca e os sapatos são os do costume. Mais negro que o normal, “caga nisso” é a expressão do seu pensamento. Já tem a roupa no corpo, já tomou banho, já fez a barba e já mastigou as torradas, engoliu-as com a ajuda de um sumo de laranja natural. Está pronto para sair, está na hora certa. Recolhe as chaves, a carteira e o telefone e espalha-os pelos bolsos do casaco. Lá fora deve estar frio mas não o bastante para pensar num casaco mais quente, não chove e por isso não pensa no guarda-chuva. Agarra a pasta de pele preta e aspecto sólido e dirige-se para a porta, já do lado de fora certifica-se uma última vez que tem as chaves de casa no bolso delas, vai tirá-las já a seguir, fecha a porta e atravessa a estrada, já tem as chaves na mão e procura o botão para desbloquear as portas, acendem-se quatro luzes e ouve-se um som que parece dizer “afirmativo!”. Entra no carro, pousa a pasta no banco do acompanhante, a chave na ignição, roda-a e ouve-se o motor, logo a seguir é o rádio, na TSF até ao trabalho.

14.11.06

tá quase!!!





Miles Davis referiu na sua autobiografia,
“Herbie era o passo à frente de Bud Powell
e Thelonious Monk,
ainda não ouvi mais ninguém
que estivesse à frente dele.”

13.11.06

marca registada

toda a gente devia passar pela experiência de viver sozinha. toda a gente devia aprender a viver sem as saias dos pais ou o companheirismo de irmãos e amigos amorosos. toda a gente devia, mais tarde ou mais cedo, aprender a viver com ela própria, a lidar com as coisas práticas do dia-a-dia, a ter o seu espaço, com o seu cheiro, as suas cores, a sua marca registada.
no fundo, trata-se de um processo de auto conhecimento que ajudará o sujeito a encontrar um equilíbrio interior onde o espaço que habita assume um papel preponderante num real sentimento independência perante o mundo. este processo de auto conhecimento através da independência e a consequente criação de uma marca registada própria, faz com que, mais tarde, este sujeito tenha uma visão mais alargada de qualquer espaço que possa vir a partilhar com alguém, uma visão mais descentrada nele próprio, mais respeitadora, mais capaz de negociar a gestão de espaços e tempos comuns a outro.

beber e ser bebido

há dias em que bebo e há dias em que é a bebida quem me bebe (onde é que já ouvi isto?). quando bebo sou, como todos, mais desinibido. quando sou bebido (é raro mas acontece), corro o risco de me transformar numa besta. como todas as bestas conscienciosas, acabo mais tarde por pedir desculpa. pouco me agrada reconhecer o erro mas faço-o, quando o faço sou capaz de, envergonhado, pedir desculpa pela bestialidade.

12.11.06

7.11.06

agitação

espero pela inspiração
para que possa escrever
com emoção,
espero que ela me grite
impacientemente
e com agitação
ou então,
esperarei
pela emoção
para que escreva
ansiosamente
e na agitação
de quem escreve
enquanto a alma grita
e o faz eloquentemente
antes que o intelecto
engula a emoção
e me obrigue a escrever
sem o familiar afecto,
pai dessa agitação.

4.11.06

sem lugar nem tempo

como se o tempo parasse
e não houvesse um lugar,
como se não importasse
todo o mundo lá de fora,
a multidão, a chuva ou o sol,
como se nada disso importasse
p’ra se viver um amor assim
sem princípio, meio ou fim,
sem amarras nem esconderijos,
como se o importante e o bastante
fossem os dois que se amam assim.

2.11.06

ler e escrever, ter e ser

porque um homem não vive só de imagens, poesia, frases feitas ou canções, muito me apraz regressar à escrita como quem nela se encontra e lhe sente o aconchego aquecido por cada palavra, o aconchego da língua materna que nos espelha as interioridades.

pouco antes da deita, pouco antes de um despertar matutino como há muito se não via, pouco antes de regressar à escola, escrevo meia dúzia de frases. escrevo sobre o que por aí se escreve e se lê, escrevo sobre o prazer de quem se dá, o prazer de quem recebe e de quem usa a língua e o intelecto para espraiar as emoções. escrevo sobre o prazer de ler e ter um amigo aqui à mão, um amigo a quem nos aproximamos ansiosamente sempre que nos agarramos à setinha do computador para seguir a ligação do seu cantinho, sempre na esperança de lá encontrar algo de novo, um novo post, uma nova mensagem, uma nova partilha. é uma alegria ter amigos também aqui tão perto, nos “favoritos”.

quando leio, leio tudo. leio quem me lê e até deixo que me leiam sem que me escrevam uma palavra que seja. também sou capaz de ler sem escrever, é raro mas faço-o. quando escrevo, escrevo o que me apetece, sobre o que me apetecer. faço-o muito para mim, muito para tornar clarividentes uma ínfima parte das ideias que me passam pela cabeça. sei que sou lido, não sou indiferente a isso mas não é isso que me molda a escrita. às vezes sou parco em palavras que dizem muito, outras vezes digo mais.

aos que leio, conheço-os um bocadinho melhor, conheço-os na franqueza do que escrevem, conheço-os nas alegrias, nas tristezas, nas dúvidas e nas certezas, conheço-os no receio que não têm para esconder, conheço-os no que me dão a ler (também a mim). sou muitas vezes surpreendido com o que leio, surpreendido pelas emoções que me chegam em palavras, pelas sensações que o espírito alcança em leituras que começam vagas até que são lidas e relidas até à medula de cada texto, de cada frase, de cada palavra, vírgula ou ponto, até ao espelho de quem se me dá. há coisas difíceis de ler, há coisas simples de se entender, há desabafos, interrogações, mistérios, fascínios e exaltações, há histórias e memórias, há todo um mundo comunicativo altamente enriquecedor. por ler e escrever, sinto-me muito mais encontrado, sinto que tenho muito cá dentro e que muitos me habitam com uma grandeza inédita. é por isso que escrevo e é por isto que leio.

1.11.06

by the way,


"some girls

are bigger

than others"

(not because

of their mothers

or fathers)