19.11.06

ficção III

Sai do café e olha para o céu que lhe parece agora mais cinzento, mais carregado. Sente um arrepio na espinha e um leve vento que lhe gela a cara. Caminha um pouco no passeio até que atravessa a estrada mesmo em frente ao banco. São oito e vinte sete. Toca à campainha enquanto encosta a cabeça ao vidro da porta para perceber se alguém o ouviu, um dos seus colegas que já se encontra atrás do balcão a arrumar gavetas, dinheiros, papeis e canetas, agacha-se e faz esconder o braço esquerdo no balcão, do lado de fora ouve-se o som abafado de uma campainha metálica, um segundo depois, empurra a porta com a mão que não segura a pasta e surge no clima ameno do interior da agência bancária, um cheiro a lavado levemente perfumado com um aroma marinho quase imperceptível mas que a ele, que não fuma e não tem o olfacto estragado pela constante inalação das toxinas do tabaco, não escapa.
Agradece ao colega que lhe abriu a porta e cumprimenta os outros dois que se movimentam apressadamente de um lado para o outro com caixas e pastas de papéis nas mãos. Dirige-se para um pequeno corredor ladeado por biombos de vidro que formam pequenos compartimentos de ambos os lados e sente um perfume familiarmente agradável, nesse instante, sai de um desses cubículos de vidro uma mulher de estatura média e porte soberbo, a caminhar como sempre, calmamente, de cabeça erguida e corpo em linha recta perpendicular ao chão que pisa. Tem cabelo castanho claro com um brilho demasiado exposto para não ser pintado, é levemente ondulado e cai-lhe um pouco até depois dos ombros. Tem pele pouco morena, olhos de um verde escurecido pelos rebordos castanhos da íris, um nariz relativamente pontiagudo e uns lábios rasgados que deixam revelar uma certa carnosidade quando os deixa relaxar. As linhas do rosto são levemente rígidas e subtilmente rectilíneas. Usa pouca maquilhagem e tem orgulho nisso, hoje, usa também umas calças pretas vincadas, a acompanhar as calças, um casaco preto de linhas simples e golas desproporcionadamente grandes para o seu tamanho. Traz ainda uma camisola canelada de algodão grosso e branco, gola redonda e suficientemente larga para deixar revelar um pouco das suas clavículas pronunciadas que usa como de uma coroa se tratasse. O perfume que surgiu antes dela, é discreto, pouco doce mas quente e levemente primaveril apesar de ser Outono. Foi assim que ele lhe descreveu o cheiro no dia em que ela o trouxe pela primeira vez para o trabalho e lhe pediu para o descrever sem parar mais do que cinco segundos para pensar nisso, foi exactamente assim que ele o descreveu sem ter deixado passar mais de dois segundos. Chama-se Ângela, está há quatro meses e meio na agência, é nova, está a estagiar e, se tudo correr bem, corre sérios riscos de assinar um contrato relativamente seguro e ficar por ali. A julgar pelo profissionalismo até aqui demonstrado, a simpatia, a inteligência e a aparência, está garantida sem ter que dormir com nenhum dos superiores, já está habituada aos seus galanteios mas desmarca-se sempre com a maior das simpatias e com o ar de quem apreciou o piropo, ele, muitas vezes discretamente atento à sua presença, já a apanhou a suspirar fundo e com ar de desprezo depois de ter voltado as costas a um desses galanteios vindos de um dos tais superiores que só se atreve a usar do (suposto) charme por causa da posição hierárquica que ocupa em relação a ela, lá fora e sem o estatuto, pensa ele, aquele homem deve levar das vidas mais tristes à face da terra. Mas pronto, cá dentro é o sub-gerente que adora motos, o Benfica e, nas suas palavras sempre pronunciadas com um ar baboso, “gajas boas”. Ela, a Ângela, que é simpática e não é parva nenhuma, atura-lhe as insistências pacientemente e com sorriso de donzela lisonjeada até ter o contrato assinado, depois disso, a paciência e os sorrisos serão exibidos consoante a disposição.
Já se cruzaram no corredor, já partilharam a brisa que se levanta quando dois corpos se cruzam tão próximos, ele já teve e já deu os bons dias e ela já lhe deu o sorriso de sempre, o sorriso controladamente sincero e o olhar de quem tem um prazer intrigado em sorrir ao único homem daquele banco que em quatro meses e meio ainda não tentou nada, nem sequer uma pergunta pseudo inocente sobre si própria. Ele entrou para o segundo cubículo de vidro do lado direito do corredor, ela já assumiu a sua posição no balcão de atendimento ao público, ele já se sentou, já tirou o que precisa de dentro da pasta, já ligou o computador e já deixou de pensar na Ângela para regressar ao pensamento que lhe tem ocupado a atenção, a “notícia”. Está agora imóvel a olhar o ecrã do computador, começa a roer a unha do dedo médio da mão esquerda, já não roía uma unha há mais de seis anos e neste momento fá-lo sem se aperceber disso. Aplicando uma pressão excessivamente pesada nos maxilares, rói a unha em meia dúzia de dentadas fortes e incisivas e atira os pedacinhos roídos para dentro do pequeno caixote de papéis usados que tem escondido por baixo da secretária.

1 comentário:

MRsK disse...

intenso, denso, muitas vidas numa e uma vida que contém todas as outras. embora quotidianamente contextualizado, sente-se a antítese do descritivo e a procura de um significado amplo e profundo das coisas. sensação que me transmite: é como olhar para um dos lados da vida de alguém, sabendo que o que se olha é a manifestação de outro, mesmo sem se saber o quê ou qual. é esse o efeito: onde se separam ou unem o real e a fantasia?