5.12.06

ficção VI

São onze da noite e ainda não jantou. A Bella sim, já teve direito a uma latinha de caça com cenoura, nem parece a mesma gata que o acompanhou até casa na noite em que ali se resolveu instalar, o preto do pêlo brilha, o branco parece algodão, já não se notam os ossos do corpo, tem as orelhas limpas e o nariz tem uma tonalidade rosada que lhe dá um aspecto de gatinha pequenina. Ele não come, não tem fome mas faz um chá e corta pão que dali a pouco está a saltar da torradeira. Senta-se em frente à televisão a comer e a beber, já está cansado de ver as notícias do acidente nos canais noticiosos, tem-na visto hora a hora nos diferentes canais, repetidas as entrevistas a familiares destroçados, a amigos e vizinhos do assassino (surpreendidos porque “ele até nem bebia muito…”), não conseguiram trazer a criança para as câmaras, não conseguiram apanhar o filho agora órfão, alguém teve o bom senso de o esconder de tudo isto, alguém achou que ter assistido a tudo deve ter sido o suficiente, alguém teve esse bom senso…. “O outro piloto continua a monte”, era sempre a última frase da reportagem.
Ele está cansado, as descrições do horror e do sofrimento ecoam-lhe sem cessar pela cabeça toda. Do ponto de vista das televisões a coisa funciona, o público gosta de ver os outros a sofrer, gosta de saber que estas coisas podem acontecer, que acontecem aos outros. Ele já desligou a televisão, faz-se silêncio ouve-se agora o ronronar da Bella no buraquinho do sofá que sobra entre o corpo dele e o braço do sofá onde ele descansa um braço. Lá fora chove a cântaros, tem sido um pára, recomeça, pára, recomeça desde que chegou a casa. Vai para o quarto, despe-se, trata da higiene pré deita, deita-se, tapa-se, ouve a chuva, a bela subiu para a cama, enroscou-se no lado de fora dos cobertores, encostada a ele. Ela adormece depois de ronronar durante cinco ou seis minutos. Ele toma uma decisão, vai envolver-se no acidente, vai querer excomungar de si próprio o pior que o habita.

Sem comentários: