18.1.08

ficção VIII

(antes)

“jovem casal morre atropelado por condutor embriagado que disputava uma corrida com um amigo e, no descontrolo do carro, sobe o passeio e embate contra uma parede, apanhando pelo meio o casal que seguia abraçado. O filho, de 5 anos que seguia mais à frente a ver as montras, assiste a tudo e vê os pais morrer à sua frente, aconteceu ontem numa avenida da capital, por volta das nove da noite”.
...

Quando sai de casa e olha o céu cinzento e a calçada seca, tem já decidida a personagem que vai encarnar: um académico estudante de psicologia a fazer um mestrado ou doutoramento (isto ainda não decidiu) sobre constrangimentos morais em homicidas involuntários.

(agora)

Durante todo o dia e toda a noite, vai alinhar os passos a seguir para se encontrar com o homicida. Vai ser uma tese de doutoramento, vai pintar alguns cabelos de branco e escolher uma roupa “casual” mais clássica, vai ter que parecer mais velho, vai ter que ler muito, decorar e memorizar, planificar minuciosamente cada passo, cada registo seu, vai ter que pensar no imprevisível, vai mentir, enganar e falsificar. Durante todo o dia só existiu enquanto pensamento, na relação com os outros ligou o botão “autómato”, colegas e clientes viram e ouviram apenas o invólucro de um ser pensante a uma velocidade de 200kmh.
Saiu do banco e foi ao hipermercado com uma lista de coisas que tinha apontado à hora de almoço. Fez o jantar, jantou, sentou-se no sofá e ligou a televisão (sem som). Deixou a gata deitar-se no seu colo, e usou o comando para activar o cd do hi-fi, schubert com “a morte e a donzela" e as “trutas”. Na mesa de apoio um bloco de notas cheio de gatafunhos com uma caneta em cima. Faz festas à gata até acabar por adormecer na lentidão dos pensamentos que se vão esgotando na lentidão do afastamento…

São quatro da tarde do dia seguinte e está em casa de roupão, a gata deita-se no cantinho de sol que atravessa a janela em direcção ao soalho de madeira da sala. Em cima da mesa e espalhados pelos sofás, papeis, papeis e mais papéis. Documentos oficiais (originais) da universidade, das finanças, da segurança social, da junta de freguesia e do hospital (vai precisar de um atestado quando tiver que meter baixa para ir uns dias à capital), páginas impressas da internet com referências a literatura - mais e menos científica - sobre psicologia clínica, estudos sobre “moralidade” (de filosofia, sociologia, teologia, …) e estudos sobre comportamentos homicidas involuntários (ante e pós o acidente). Num canto da mesa, destacado da papelada toda, um conjunto interessante de instrumentos perfeitamente alinhados: um x-acto, um tubo de cola tipo “batom”, uma régua de 25cm, uma tesoura, uma esferográfica azul (bic normal) e várias fotografias suas - tipo passe - ligeiramente modificadas no photoshop. Hoje é sexta mas usou um dia de férias que teve que ter de emergência porque “morreu uma tia muito querida lá no fundão…”. Foi a primeira falta em 14 meses.
Contacta as rádios, jornais e televisões que acompanharam o caso e pede os arquivos relativos à notícia. O pretexto é a tese de doutoramento “constrangimentos morais em homicidas involuntários”. Os órgãos de comunicação acompanharam o acidente disponibilizam os arquivos mediante a sua presença pessoal devidamente acompanhada por um comprovativo passado pela universidade oficializando a sua investigação. Assim sendo e já que tem que se deslocar à capital, aproveita para contactar o estabelecimento prisional onde reside o “homicida involuntário” enquanto aguarda pela marcação do julgamento. A prisão pede algo parecido ao tal comprovativo do doutoramento mais o BI. Ele diz se apresentará brevemente mas tem ainda que rever a agenda uma vez que tem outras visitas marcadas e muita leitura para fazer. Não marca datas mas está ansioso pelo encontro com o homicida.

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