22.3.10

o dia de noite

o despertador ainda não tocou e ele já está a acordar num daqueles dias em que o seu corpo se sente em sintonia com o universo. os dias e as noites não precisam das horas e o seu corpo sabe às quantas anda. estranha não ver claridade nenhuma a entrar pelas arestas da janela. levanta a cabeça da almofada e confirma que é de noite. não costuma acordar tão naturalmente saciado de sono sem que haja uma luminosidade ténue no quarto. os números a vermelho que marcam 7:32 no telemóvel e são a maior fonte de luz no quarto. àquela hora não é normal, muito menos em maio.

levanta-se devagar e a achar que o relógio do telefone está avariado. faz o percurso em modo de meio-a-dormir-às-escuras até à sanita. enquanto alivia a bexiga, confirma que lá fora só as luzes dos candeeiros e das estrelas iluminam a escuridão. regressa ao quarto cauteloso e esforça-se por não a acordar, tropeçar numas meias suas ou nos seus chinelos. apalpa cuidadosamente a mesinha de cabeceira dela e consegue encontrar o seu telemóvel: 7:34. não pode ser. é tão de noite como às duas da manhã numa madrugada de dezembro. os dois telefones com as horas trocadas. pousa o telefone e vai para a sala. acende o candeeiro de canto e a televisão. o serviço de tv diz que são 7:35. estamos em maio, são 7:35 da manhã e diz que é de noite. só pode ser um vírus que chegou a tudo que é equipamento electrónico, uma catástrofe mundial.

apressa-se para o quarto, agacha-se ao lado dela e tenta acordá-la com calma. ela pergunta se o despertador já tocou, ele responde que não mas que já são vinte para as oito… e é de noite! – o quê? estás doido? - não, não estou, olha para a janela! – não consigo, porque é que a abriste toda? neste momento pergunta-se a ele próprio como é que ela sabe que a janela está escancarada se ainda nem tirou a cabeça debaixo dos lençóis. ela estranha o silêncio dele ali ao lado da cama e a olhar para a janela. - o que foi? – pergunta-lhe. - como é que sabes que a janela está escancarada? ela, por momentos, pensa que está a sonhar de tão absurda que é a pergunta. não, não está a sonhar e responde: - só se tivesses tirado o tecto é que havia mais claridade no quarto! que horas são? – vinte para as oito, já te disse. vinte para as oito e eu não vejo claridade nenhuma, para mim é de noite. depois de dizer isto, passa a acreditar que aconteceu algo durante o sono que lhe afectou a visão. não há nenhum vírus electrónico, os seus olhos é que estão avariados.

continua sem se mexer ao lado da cama e ela, como se lhe sentisse o ritmo cardíaco a acelerar e o seu espanto a transformar-se em preocupação, tira a cabeça debaixo dos lençóis e olha para ele com a cabeça erguida e os olhos semicerrados. assusta-se com o ar assustado dele e pergunta-lhe o que se passa. ele responde-lhe que vê tudo escuro. – como assim? não vês nada? estás cego? o que se passa? – vejo mas não estou cego, vejo o dia de noite. dito isto levanta-se a correr, liga a luz do tecto e vai à procura do lugar no céu onde àquela hora devia estar o sol. devia. devia porque só vê estrelas e a lua num quarto crescente, nada de sol.

entretanto ela aparece na porta da sala a acabar de atar o cinto do roupão. ele volta-se e vê-a a olhar para ele, assustada, com os olhos cerrados e a mão esquerda a fazer de pala na testa. agora é ele que lhe sente o ritmo acelerado. olha para o lugar no céu onde deveria estar o sol e pergunta-lhe se ela o consegue ver. ela diz que não consegue olhar para ele mas que está lá, no lugar onde deve estar. – não o vês? – não… venho já! sai a correr, vai ao quarto, veste o roupão e vai à rua: carros a passar ordeiramente de luzes desligadas, pessoas com cabelos a acabar de secar, óculos de sol, um homem a passear um cão, outro saudável a fazer jogging, aromas a perfumes matinais misturados com fumos de escapes, movimento na rua a fazer adivinhar a hora de ponta. as pessoas que passam por ele, ali especado de roupão, olham-no com desdém, a troçar, surpreendidas por verem aquele sujeito despenteado e de barba por fazer, ali, de roupão e no meio da rua. um louco, só pode ser. 

um louco é também o que ele pensa dele próprio naquele momento. um personagem saído de um episódio do twilight zone, dum filme do m night shyamalan ou de um livro do stephen king. regressa a casa, liga o portátil enquanto vai buscar uma maçã que come em meia dúzia de dentadas. tira um café. larga o caroço ao lado da máquina de café, agarra na chávena, leva-a para a sala e pousa-a ao lado do computador. abre a garrafa de água, espera ter a maçã bem engolida e bebe três goles cheios. afasta a cadeira, senta-se, pousa a mão sobre o rato e abre o word. acende um cigarro e começa a escrever: o despertador ainda não tocou e ele já está a acordar num daqueles dias em que o seu corpo se sente em sintonia com o universo.

2 comentários:

thedevilwearsbombazina disse...

empolgante.

[só consegui ler ao seleccionar o texto até ficar branco..é do tom do template, não se lê bem. Ou serão os meus olhos?]

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João disse...

uso o google chrome, experimentei o firefox e o internet explorer e está tudo bem... letras castanhas com fundo claro...

beijos