9.11.07

história da mulher que punha perfume para ir despejar o lixo e do homem que nem after-shave usava

Ela só saía de casa para ir às compras e despejar o lixo.
Ele só saía para trabalhar.
Ela não precisava de o fazer, a herança excedia em muito tudo o que poderia gastar nesta vida.
Ele tinha que trabalhar para comer.
Ela punha perfume sempre que saía de casa. Ele nem after-shave usava.
Ela vivia sozinha. Ele também.
Ela mudou-se para a cidade e passou a ficar horas à janela.
Ele continuava a apanhar o lixo.
Ela nunca o via porque a essa hora jantava sempre enquanto via as notícias, ocasionalmente, chegava à conclusão que tanto barulho lá fora, só podia ser causado pelo camião do lixo.
Numa dessas noites, ao jantar e ao ouvir o camião, decidiu mudar a rotina e despejar o lixo mais tarde, antes do jantar (quando não vivia na cidade, fazia-lo à tarde, mas na cidade, à tarde, há muita gente na rua).
Na noite seguinte, ele, pela primeira vez na vida, sentiu um cheiro agradável enquanto saltava do camião para conduzir o caixote até ao guindaste e este até ao camião.
Nessa noite, o guindaste parou enquanto o caixote ficou a abanar e os automobilistas (à espera que o trabalho acabasse e o camião desimpedisse a rua) a apitar.
Ele estava imóvel, de olhos fechados e sorriso ténue.
Acordou quando o próprio motorista do camião começou a apitar…
A partir dessa noite, nunca mais ele cheirou o mal.
A partir dessa noite, ela só se sentiu sozinha aos domingos (que não havia recolha de lixo) ou quando os serviços municipais de higiene e limpeza faziam greve.
Foi assim sempre, até que se encontraram no mesmo dia à mesma hora, no cemitério da cidade, antes de serem fechados com terra, um ao lado do outro.

7 comentários:

sr disse...

"..."
(só me apetece escrever palavrões!)
xiiiiii... que raio de vento sopra pra esses lados? n parece teu...

n disse...

palavrões??
bem... deve ser uma questão de estado de espírito...
Eu gostei muito da história, talvez porque acredito que num momento de magia se muda uma vida.

João disse...

a ideia tinha-a apontado numa tarde em que vi uma vizinha ir despejar o lixo como quem vai à ópera, a história foi escrita de rajada....
também não percebo os "palavrões" nem porque isto nem parece meu... nem sempre se é aquilo que se escreve. às vezes é pelo puro prazer da invenção, da criatividade...

n disse...

deve ter sido pq decidiram marcar um encontro pra morrer, a sô não gosta de ouvir falar na morte.

João disse...

ah... ok, deve ser isso ;)

Pedro Sá Valentim disse...

"a ideia tinha-a apontado numa tarde em que vi uma vizinha ir despejar o lixo como quem vai à ópera", e há frases assim, destas, que deviam calar, por momentos, toda a gente, para deixar que ela (a frase) respire em nós, mas o que haverá no mundo que não possa parecer nosso, se nós pura e simplesmente quisermos que o seja?, se nós estávamos lá naquela tarde e vimos o que vimos e em nós foi acordada qualquer coisa, depois é uma nota que se teria (quantas vezes só mental!)e a partir daí: uma ideia, uma frase, mais outra, e o mundo ganhou uma história que até há momentos o mundo não tinha.
É assim, destas, que eu gosto.
Abraço!

MRsK disse...

o encontro do sujo com o limpo, do morto com o vivo, do quadrado com o redondo... e o ser humano a criar encaixes perfeitos :)