27.4.11

a voz

Sete da manhã e o despertador toca. Repete o toque três vezes até ele se levantar. Cumpre todos os rituais matinais desde o duche até à entrada ao serviço. Quando se cruza com o primeiro colega na porta do prédio, a resposta ao bom dia do outro não lhe sai. Repete todos os movimentos – desta vez mais devagar – mas só ouve os bons dias dentro da sua cabeça, som, nem vê-lo. O colega, que estranha a situação, apressa o passo a achar que este está afónico e este, que sabe que não está, para e tenta pronunciar algumas palavras que não ouve. Surdo não está porque ouviu os bons dias do colega. Dirigiu-se à pressa para a casa de banho, pousou a pasta no chão, abriu a torneira de um dos lavatórios, encheu a boca de água, gorgolejou, engoliu, cuspiu e nada. Levou as mãos à garganta, apertou e massajou mas como não entende muito de anatomia, desistiu de encontrar as cordas vocais. Debruçou-se sobre o lavatório, apoiou as mãos de lado, encostou a cara ao espelho e tentou espreitar para dentro da garganta: tudo aparentemente normal. Fechou a boca e ficou a olhar-se nos olhos enquanto a sua cabeça pronunciava um chorrilho de palavrões entremeados por uma data de interrogações. Tenta ser prático e lembrar-se da última vez que falou, foi ontem à noite, vamos já para casa foram as últimas palavras que se ouviu pronunciar. Musa, a cadela a quem as dirigiu não o pode ajudar muito. A última pessoa que o ouviu, e o ouviu de viva voz a dizer até amanhã, foi uma colega ontem às cinco e meia naquele mesmo edifício. De facto, dá-se conta que quem mais lhe vai sentir a falta da voz é Musa, a fiel cadela, companheira desde há cinco anos para cá. E ele, é provavelmente na relação com Musa que mais vai sentir a falta da voz. Foram cinco anos de treino e aprendizagens por água abaixo, dificilmente agora ela lhe entenderá as ordens ou os diferentes estados de espírito revelados nas ténues variações do tom de voz. Pensa que qualquer coisa parecida com um deus o deve ter castigado roubando-lhe a voz, porque as palavras de ocasião pronunciadas em contexto de trabalho por um tradutor introvertido, solitário e sociável apenas online, são palavras pouco mais do que desnecessárias à vida de qualquer ser humano. Enquanto chega a esta conclusão, vê a sua imagem no espelho acenar-lhe um silencioso adeus, a voltar-lhe as costas e a desaparecer pela porta espelhada da casa de banho.   

3 comentários:

n disse...

É um texto de ficção mas o cérebro pode pregar-nos partidas destas!
À força das nossas palavras nunca terem servido para nada; quando só fica o plano virtual para interagir, para que queremos a voz?

Aterrador é vermos a nossa imagem a desistir de nós.

Belo texto amigo! Parabéns e abraço grande.

João disse...

com a tua interpretação do texto dizes duas coisas: és grande e já leste muito.

beijos e um abraço forte.

thedevilwearsbombazina disse...

back to writting. great!
texto interessante..um tipo, de repente, perder a voz.

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